S(ó)ares

Anabela Fino

A eleição do senhor Hollande como presidente de França provocou no Partido Socialista um verdadeiro frenesim, que seria patético se não fosse grotesco. O pontapé de saída foi dado por Mário Soares – quem mais havia de ser? – em entrevista ao jornal i, onde, com a desfaçatez que o caracteriza, o fundador do PS, ex-primeiro-ministro e ex-presidente da República defendeu que é tempo de o seu partido romper o acordo com a troika, porque austeridade só cria «recessão e desemprego».

Deixando de lado o facto de Soares ter demorado um ano a reconhecer o óbvio, vale a pena atentar na argumentação. O PS, diz, estava comprometido com o acordo porque foi assinado por José Sócrates, mas neste momento o compromisso deixou de fazer sentido.

E porquê? Soares – revelando o seu irreprimível pendor de «maria vai com as outras» – esclarece: «Agora que está toda a gente a falar outra linguagem, porque é que o PS deve continuar a ser fiel ao acordo? (...) [O acordo] Pode ir ao ar. Se não for pelo PS, poderá ser pela própria troika que vai ao ar».

Ou seja, passado um ano de bestial ataque a direitos fundamentais dos trabalhadores e do povo, quando serviços públicos essenciais ao bem-estar da população foram ou estão em vias de ser desmantelados – da saúde ao ensino, da habitação à protecção social, dos transportes às comunicações –, quando a exploração do trabalho atingiu níveis inauditos e mais medidas estão na forja para reduzir a nada o trabalho com direitos, quando o roubo nos salários e subsídios lançou na miséria milhares e milhares de famílias, quando o desemprego grassa como uma chaga sem controlo atingindo valores nunca vistos e deixando à margem da sociedade um número crescente de trabalhadores sem qualquer apoio, quando os jovens têm como perspectiva emigrar e/ou mendigar a sobrevivência – o fundador do PS conclui que o acordo das troikas pode «ir ao ar».

Não se trata, note-se, do reconhecimento da necessidade de pôr fim às políticas ao serviço do capital que acrescentaram exploração e miséria às políticas anti-sociais que o último governo PS vinda desenvolvendo de PEC em PEC, tal como os que o antecederam nas últimas quase quatro décadas. Trata-se, como diz Soares, do facto dos protagonistas da troika estarem «divididos», pelo que vão ter de se entender «uns com os outros» e «acabarem com a austeridade nos termos drásticos que a exigem».

A exemplo do dirigente da UGT, João Proença, a quem bastou uma conversa de pé de orelha com Passos Coelho para esquecer o ultimato feito ao Governo exigindo políticas de emprego, também Soares se contenta com as promessas de Hollande de bater o pé à senhora Merkel, com quem o presidente eleito francês já tem beija-mão agendado logo depois de tomar posse, antes de rumar para o encontro de vassalagem com Obama, nos EUA.

Enquanto isso, aconselha Soares, o PS que não tenha pressa, pois «só terá benefícios» em «continuar de fora» do governo mais tempo. À espera da alternância, evidentemente, que a alternativa, essa, não consta destes planos.



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