Governo sacrifica Cultura
Cancelar concursos para apoio às artes, além de revelador da desvalorização e pouco apreço do Governo pela Cultura, assume o carácter de «uma outra forma de censura». Quem o diz é o PCP, que acusa o Governo de estar a impor um autêntico «garrote financeiro» às estruturas de criação cultural e artística.
Está em causa a livre criação artística
Uma asfixia que não constitui propriamente uma surpresa vinda de quem vem, ou seja de um Governo que pela sua natureza encara a Cultura apenas «como uma mercadoria e não como uma expressão humana e um direito de todos», segundo o deputado comunista Miguel Tiago, que abordou o tema em declaração política proferida numa das sessões plenárias da passada semana.
Em sua opinião, o que a política do Executivo de Passos e Portas encerra é uma opção «pela generalização da mediocridade, pela aculturação e colonização cultural, pela massificação de uma cultura orientada exclusivamente para o lucro e para a instrumentalização da consciência do indivíduo e do colectivo».
Sem medo das palavras, numa crítica violenta às orientações do Governo, acusou-o ainda de ceder «à política da monocultura imposta pela grande distribuição, uma espécie de prisão intelectual do entretenimento, onde a livre expressão artística é subjugada ao investimento dos grandes grupos de produção e distribuição».
Limitar apoios
O que está posto em causa, pois, é a produção e a livre criação artística (em que estão envolvidos milhares de cidadãos), sacrificada e menosprezada por uma política que, entre outros delitos, não realiza os concursos de apoio às artes e estrangula financeiramente grupos, companhias e projectos individuais e colectivos (seja pela redução dos apoios a meio de contratos-programa bienais e quadrienais, seja pela não realização dos concursos para o apoio à produção cinematográfica), não falando do desmantelamento da Tobis, da fragilização da DGArtes ou do subfinanciamento dos Teatros Nacionais.
Mas não é apenas a criação artística que sai gravemente ferida por esta política de ataque cego a tudo o que é actividade cultural. Lesados saem também os portugueses, porquanto, como observou Miguel Tiago, «se o Estado não apoia as artes», não só os criadores deixam de poder produzir teatro, dança, cinema, como, «por inexistência desses produtos culturais», também a população em geral deixa de poder ir ao teatro, à dança, ao cinema.
«A liberdade de criação das estruturas de produção é a liberdade de fruição dos cidadãos – uma não existe sem a outra», frisou o deputado do PCP, que não escondeu a sua indignação pelo facto de a limitação de apoios chegar ao cúmulo, por exemplo, de assumir a forma de cláusulas contratuais com companhias onde é dito que o Governo apenas garante o financiamento do primeiro trimestre.
«Então não se está mesmo a ver o Governo assinar um contrato-programa com uma grande empresa, digamos, por exemplo, a Lusoponte, e dizer que só assume responsabilidade por um trimestre», afirmou, irónico, o parlamentar comunista, anotando que para esses contratos-programa «o Governo trata sempre de garantir a disponibilidade da verba necessária, mesmo quando são contratos ruinosos para o Estado».
Descartáveis
Miguel Tiago chamou ainda a atenção para o facto de em paralelo com a asfixia da produção cultural independente e alternativa, bem como da destruição do Serviço Público de Artes e Cultura, estar a assistir-se ao «alargamento do mercado do entretenimento» e à «total mercantilização do acesso e da fruição culturais, deixando para as elites o acesso à produção cultural de qualidade e para as massas a cultura descartável».
Num debate onde o PS surgiu a secundar as posições do PCP (com a deputada Inês Medeiros a criticar agora como altamente negativo o que em muitos aspectos teve a sua génese no governo anterior), foi a bancada do PSD, por intermédio de Ana Sofia Bettencourt, a vir a terreiro em defesa do Governo. Falou do «mar que separa do ponto de vista ideológico» o seu partido do PCP e pôs o acento tónico no trabalho das «empresas que estão a fazer cultura» – «de grande qualidade», disse –, desvalorizando a intervenção do Estado e o seu papel neste capítulo.
Miguel Tiago não podia estar mais de acordo quanto à existência dessa separação entre as duas forças políticas, lembrando que a linha que estabelece essa fronteira chama-se Constituição da República e nela se consagra o papel do Estado no apoio à Cultura, nomeadamente quanto ao acesso, à produção, criação e fruição de bens culturais.
A visão empresarial sobre o tema expressa pela deputada laranja não passou também sem uma crítica mordaz do deputado do PCP, que a acusou de estar «a confundir Cultura com entretenimento e indústria de vídeo-jogos».
Valor inestimável
Onde estão a faltar os apoios do Estado é ao trabalho levado a cabo por milhares e milhares de pessoas, de todas as idades, envolvidas em processos criativos, aos mais variados níveis – cooperativos, empresariais, associativos –, nas mais diversas expressões artísticas, do teatro ao cinema, da pintura à escultura, da literatura à dança ou à música.
Criadores, como bem observou Miguel Tiago, que não têm o apoio dos «gigantes cinematográficos», o «amparo da grande distribuição livreira», o estímulo do «monopólio editorial que vem silenciando quem ousa escrever diferente», tal como não têm os meios necessários para «anunciar as suas peças de teatro em grandes jornais».
E o que verdadeiramente choca, também neste capítulo, é o contraste que resulta das opções políticas: a miséria ou inexistência de apoios às artes, por um lado, e o tratamento de privilégio e luxo dado aos negócios milionários, por outro lado.
Miguel Tiago fez contas e deu um exemplo: o fundo de 12 mil milhões de euros para os bancos, mais os 33 mil milhões de euros de juros que o País paga pela intervenção externa, somados, correspondem a 241 anos do orçamento de política cultural. O mesmo é dizer: «aquilo que este Governo entrega de mão beijada às forças que destroem o País seria o suficiente para duplicar o actual orçamento do Estado para a cultura durante 120 anos».