Democracia vive a sua maior crise
Cem anos depois da implantação da República, Portugal está confrontado com «uma nova espécie de ditadura das finanças que rasga a Constituição democrática de 1976, que destrói conquistas civilizacionais de carácter social duramente alcançadas pela luta de gerações, que desrespeita os mais elementares princípios do Estado de Direito, da moral e da decência».
Este é o quadro que melhor caracteriza a situação política do País num momento em que, segundo o PCP, estão a ser «perigosamente postos em causa» os «valores mais profundos da República e da Democracia».
O alerta foi deixado pelo deputado comunista António Filipe, vice-presidente da AR, faz hoje oito dias, na sessão solene que marcou o encerramento das comemorações do centenário da implantação da República em 1910.
Num discurso onde não deixou de reflectir sobre os ensinamentos a reter do percurso que se seguiu à ruptura com a monarquia, o parlamentar do PCP pôs sobretudo o enfoque nos perigos que hoje pairam sobre a democracia em resultado de uma política de terra queimada ao serviço dos interesses dos poderosos e da alta finança.
Exemplificando, denunciou, em particular, a alienação da nossa soberania, deixando-a «às mãos de um auto-proclamado directório europeu» e «refém dos especuladores», ao mesmo tempo que a esmagadora maioria dos portugueses «tende a ser esmagada por decisões políticas iníquas, supostamente ditadas por uma crise financeira que não provocou e de que é vítima».
O ataque aos direitos dos portugueses à Saúde e à Educação, pondo-os em causa de modo implacável, é outro eixo da acção governativa que suscita a maior repulsa da bancada comunista, que rejeita com igual vigor a supressão cruel de prestações sociais vitais para garantir condições mínimas de sobrevivência a milhares de cidadãos.
O País a regredir
O aumento do horário de trabalho, sem a correspondente remuneração, em nome da competitividade das empresas, é outra imperdoável malfeitoria desta política, segundo António Filipe, que verberou duramente a liberalização dos despedimentos e a drástica redução das indemnizações por despedimento.
Alvo de crítica violenta por parte do parlamentar do PCP foi igualmente o corte de parte dos rendimentos dos trabalhadores «para pagar a ganância dos especuladores» e, por outro lado, o sufoco fiscal a que trabalhadores e reformados estão a ser sujeitos para que «os rendimentos do capital se mantenham isentos de tributação».
Um «poder político submetido ao poder económico, conquistado e exercido à custa de falsas promessas», que lança a maioria da população na pobreza «para que os ricos sejam cada vez mais ricos», completa o actual quadro de um País que regride pelas mãos do Governo PSD-CDS/PP a olhos vistos nos planos económico e social.
E por isso, no momento em que cai o pano sobre as comemorações do centenário da República, António Filipe não escondeu a «profunda inquietação» da sua bancada com o presente.
«A nossa democracia passa hoje pela maior crise da sua história», advertiu, deixando, porém, uma «convicção profunda: «a de que não são os banqueiros e agiotas, mas o Povo, quem mais ordena».
Contra ventos e marés
Comentada por António Filipe foi uma afirmação recente de Gomes Canotilho em que este, perorando a propósito da defesa da Constituição nos tempos que correm, defende a ideia de que tal tarefa é «como travar o vento com as mãos».
«É uma frase triste, que vinda de um insigne constitucionalista, só pode ser entendida como um alerta e um sinal de preocupação», sublinhou o deputado do PCP, interpretando as palavras do professor de Coimbra.
«Bem sabemos que os ventos que sopram são adversos. Adversos para os princípios em que assenta a República, para os valores da democracia e do Estado de Direito, para o respeito pela dignidade de quem vive do seu trabalho. Mas também sabemos que não é esta a primeira vez que o povo português é chamado a lutar contra o vento com as suas próprias mãos», anotou António Filipe, recordando que foi contra ventos e marés que o povo ergueu a República, fez o 25 de Abril de 1974, construiu uma nação com nove séculos de história.
Já demonstrou, em suma, por mais de uma vez, que «pode travar o vento com as suas próprias mãos», acentuou com todas as letras António Filipe, absolutamente certo de que «por mais adversos que sejam os ventos», o povo «saberá virar esta página difícil da sua – nossa – História, e impor, mais cedo que tarde, uma mudança política no sentido do progresso e da afirmação plena dos valores da Democracia e da República».
Glórias e misérias
«Uma afirmação de soberania e um assinalável progresso no plano das liberdades fundamentais, da educação e da cultura, e da laicidade do Estado», assim definiu António Filipe a implantação da República, corolário do descontentamento e protesto popular «contra uma monarquia profundamente desacreditada».
Desse conjunto de novos direitos e garantias individuais de cariz progressista falou o deputado comunista, dando variados exemplos (da gratuitidade e obrigatoriedade do ensino primário elementar à consagração da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, passando pelo reconhecimento do direito à assistência pública) para, logo em seguida, pôr em evidência o contraste entre a natureza positiva dessas medidas nos capítulos económico e social e, por outro lado, a «forte hostilidade» do novo poder para com as classes trabalhadoras e o movimento operário.
Ora foi essa hostilidade e a frustração das expectativas populares, privando a República de «uma base social de apoio que tinha sido decisiva para a sua implantação», que «veio a revelar-se fatal e a abrir caminho à ditadura militar e à instauração do fascismo».
«Nos 16 anos em que subsistiu, a Primeira República Portuguesa conheceu glórias e misérias. Nasceu dos sentimentos profundos do povo que a defendeu nas barricadas da Rotunda. Foi defendida de intentonas monárquicas, de incursões militares e de ingerências externas. Passou por noites sangrentas e ditaduras efémeras. Envolveu-se na tragédia da Grande Guerra», lembrou António Filipe, antes de registar outros que a marcaram de forma indelével pela negativa: «Criou promessas que não cumpriu. Traiu as expectativas das classes laboriosas. Sucumbiu às mãos de uma ditadura fascista que sequestrou os valores republicanos e que afundou o País durante quase meio século na opressão, na pobreza e no obscurantismo».
E só no 25 de Abril de 1974, «coroando a resistência do povo», sublinhou por fim, a «República foi resgatada e os seus valores matriciais postos em prática, com a reafirmação de Portugal como uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular».