Um quadro de terror

Correia da Fonseca

Não me perguntem em que canal aconteceu, a que horas, se foi ou não foi no contexto de um chamado debate com vários participantes ou no de uma entrevista com um só convidado no estúdio: há já algum tempo de deixei de tomar notas nestes casos, por ser inútil ou pelo menos de escassa utilidade fazê-lo. Como se sabe, não são muito numerosas as figuras mais ou menos públicas que frequentam esses momentos ditos de opinião, e de qualquer modo seria de todo inapropriado invocar a seu respeito que «cada cabeça, cada sentença», como por vezes diz o povo. Bem pelo contrário, o que nestes casos se pode e deve dizer é que «várias cabeças, as mesmas sentenças», pois à relativa pluralidade de presenças não corresponde uma efectiva pluralidade de opiniões, excepto em questões secundárias ou de pormenor. De facto, o pluralismo opinativo na televisão portuguesa é de via estreita, como certas linhas ferroviárias muito comuns no tempo em que ninguém ainda sonhava com TGV’s, e não serão muitos os que se ralam com isso ou mesmo os que dão por essa estreiteza, de tal modo já lhe estão habituados. Por tudo isto e provavelmente por algum motivo mais, não me perguntem o nome do cavalheiro que um dia destes foi chamado a transmitir ao País o seu pensamento acerca da actual crise, seus arredores e consequências, bem como a formular algumas sentenças proféticas sobre o futuro imediato ou a médio prazo. Sei, isso sim, que o seu apelido tinha uma qualquer consonância com trevas e negritudes, o que me pareceu adequado, e daí não passo. Nem me parece que tanto se torne necessário porque, em circunstâncias destas, as palavras proferidas é que importam e os apelidos são quase indiferentes.

 

Uma frase curta

 

Ora, aconteceu que o momento mais significativo do depoimento prestado pelo tal senhor, cidadão com relevantes funções no partido agora maioritário, foi aquele em que afirmou, com uma firmeza que até se avizinhou da crueldade, que «hoje é um privilégio ter emprego» e ter segurança no trabalho. Note-se que a afirmação não foi produzida em tom de crítica ou de lamento, mas sim como uma espécie de denúncia de uma situação indesejável, como argumento para preconizar a extinção dos oásis de segurança no emprego que ainda resistam ao furacão ultraliberal que sopra por todo o mundo e designadamente em Portugal. Foi uma frase curta mas útil porque esclareceu o projecto alimentado não só por quem de modo tão breve o sintetizou, mas também pelas forças políticas de que naquele momento o sujeito foi efectivo porta-voz. É um projecto que aponta para um País de perfil bem caracterizado: um País onde muitos milhares de trabalhadores desempregados, e muitos mais em vésperas de desempregados ficarem, estariam condenados a vaguear de terra em terra, de empresa em empresa, de guichê em guichê, em busca de um posto de trabalho que sempre seria tendencialmente efémero mas, no lapso de tempo que durasse, talvez permitisse pagar a alimentação, o tecto e todo o resto de despesas de necessidade primária para si e para a família; um País habitado de Norte a Sul pela angústia de nenhuma condição elementar de sobrevivência digna estar assegurada para o mês, a semana, o dia seguintes; um País onde os supostamente velhos seriam expulsos dos lugares onde durante décadas ganharam a vida e entregaram ao patronato as suas mais-valias. (Estas regras comportariam algumas excepções, é claro, designadamente as do cavalheiro que assim falava mais as dos seus amigos e iguais, decerto com garantidas fontes de rendimento, de carácter salarial ou não, mas abundantes e sólidas.) Seria um território devastado por vários tipos de insegurança, incluindo a que directamente decorre dos surtos de delinquência que os altos níveis de desemprego e a insegurança dos postos de trabalho sempre geram, como cronicamente se vê nos Estados Unidos da América, tanto e de tal modo que alimenta tematicamente uma rendosa indústria de ficção em que a verdadeira vedeta é o crime. Não seria bem um País civilizado, como claramente se entende, mas sim um território ocupado pela barbárie informatizada que já por aí se reclama de modernidade. Seria, enfim, um quadro de horror. Mas é o que aquele cavalheiro e os muitos como ele pretendem instalar e consolidar, porventura até o fim dos tempos.



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