A modernidade capitalista e a eterna dialéctica entre emoção e razão

Luís Coelho

Quando se define o ser humano como «animal racional» parece que, numa certa perspectiva, se medra numa pungente contradição; pois, se a condição animal se define essencialmente pelo comportamento instintivo, afecto às emoções que não ambicionam a consciência, a condição especificamente humana remete, supostamente, para uma racionalidade que, em última análise, representa o nível mais evoluído de um agir que visa a auto-preservação. Esta sempre imperecível contradição «emoção versus razão» representa, não obstante o facto de as duas se entrelaçarem de um modo bastante mais complexo do que aquele que é muitas vezes atendido, a relação dialéctica mais importante do momento de caracterização da outra nossa familiar dialéctica, nomeadamente «capitalismo versus marxismo».

Tanto o capitalismo como o marxismo se pretendem racionais, mas o facto é que a dialéctica «emoção versus razão» nem sempre se consegue escalpelizar com objectividade aquando do exercício de caracterização da época moderna, era reconhecidamente liberal.

Por exemplo, a modernidade aparece marcadamente conotada com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, assim como com a demarcação de um pensamento categorizado, de índole quantitativa e materialista, o que, aparentemente nos leva a ver a modernidade como um resultado da actividade racional. Por outro lado, visto que as pessoas possuem uma relação espontânea e, portanto, irreflectida com os objectos da tecnologia, limitando-se a fazer uso alienado do «bem-estar» que os luxos do capitalismo propiciam, é indubitável que a emocionalidade parece ser a regra de funcionamento dominante do ser humano da era moderna.

O facto de possuir uma relação privilegiada com o suposto progresso científico e tecnológico, associado à assunção de que o liberalismo possui uma base teórica justificativa científica (no sentido das ciências «duras», «exactas» e «positivas»), leva a que o capitalismo se assuma como racional, incluindo a suposição, tantas vezes defendida, de que a democracia só é compatível com os sistemas liberais. No entanto, é impossível não reconhecer no comportamento competitivo e egotista do «cada um por si» dos «filhos da burguesia» todos os caracteres adstritos à animalidade básica e instintiva com vista à sobrevivência. De resto, a relação entre o capitalismo e as características da sobrevivência animal previstas pela teoria de Darwin terá sido compreendida pelo próprio Marx melhor do que qualquer outro. Poderíamos acrescentar a isto o apelo às emoções e «sensações» que o comércio e o marketing efectuam de forma não menos que doentia.

Na sua compreensão «sociológica» dos factores psicossociais que contribuem para as desigualdades sociais e económicas, não pode o Socialismo deixar de ser visto como um eterno contributo para a verdade racional das coisas, mesmo que o método marxiano propriamente dito, que pouco tem a ver com o método das ciências «exactas» (ao contrário do que o próprio Marx defendia), seja incluído no conjunto dos argumentos dos capitalistas esgrimidos em apologia dele como «método» irracional e acientífico (coisa que, de resto, deixa de fazer sentido face à visão da ciência pós-moderna, o que inclui a fragilidade das ciências «positivas»...).

Não se pretende, de qualquer modo, defender que a emocionalidade é necessariamente má, até porque esta não deixa de constituir a matriz básica de uma racionalidade consciente. Pretende-se, sim, fazer o apelo de uma emocionalidade evoluída, e portanto sentimental, a qual só pode fazer sentido numa sociedade onde residam certos padrões de solidariedade e onde a lógica «quantitativa» tenha, de uma vez por todas, sido entendida como inimiga do verdadeiro «progresso».

Assim sendo, pretende-se que o marxismo se faça acompanhar pela sempre eterna busca de equilíbrio entre uma emocionalidade que permite a cooperação entre pares (em desprimor dos instintos egotistas de sobrevivência) e a racionalidade que permite a aproximação de uma forma o mais puramente objectiva de Justiça.



Mais artigos de: Argumentos

Discrepância curiosa

O Movimento 15 de Maio – que no último fim-de-semana levou um mar de gente à praça Puerta del Sol, em Madrid, num gigantesco protesto popular –, recebeu o inesperado apoio de Joseph Stiglitz, o economista norte-americano laureado com o Prémio Nobel e que já foi um...

Um quadro de terror

Não me perguntem em que canal aconteceu, a que horas, se foi ou não foi no contexto de um chamado debate com vários participantes ou no de uma entrevista com um só convidado no estúdio: há já algum tempo de deixei de tomar notas nestes casos, por ser inútil ou pelo...

Um «pacto de confiança»

«Conhecer Deus é praticar a justiça, ser solidário com os pobres, tal como eles existem hoje: oprimidos, membros de uma classe, de uma raça, de uma cultura ou de uma nação explorada» (Gustavo Gutierrez, professor de Teologia e pioneiro da Igreja da...