Censo sem senso
Os portugueses começaram este mês a receber o questionário dos Censos através do qual é suposto, uma vez recolhida e tratada a informação, ficar a saber coisas tão importantes como quem somos, quantos somos, onde vivemos, como vivemos, que trabalho temos...
É um trabalho sério, este, ou deveria sê-lo, já que a partir deste exaustivo levantamento se fará o retrato do povo que somos e, consequentemente, do País em que estamos.
Que o retrato será sempre incompleto não se duvida, pois não há inquérito, por mais perfeito que seja, capaz de traduzir sofrimentos, angústias, desesperos, sonhos. Saber quantos de nós vivem sozinhos não reflecte por si só a dor da solidão que tal pode provocar; dispor de um tecto e uma torneira de onde jorra água não significa necessariamente ter uma casa digna desse nome ao invés de um tugúrio; ter um trabalho e um rendimento não é – embora devesse sê-lo – sinónimo de sobrevivência em condições de dignidade; frequentar uma escola não quer dizer – embora pudesse e devesse – que se tem abertas as vias do conhecimento e o caminho do futuro sonhado. Mas mesmo sabendo tudo isso, o mínimo que se espera de um Censo – logo do inquérito a ele subjacente – é que não deturpe a realidade. Ora sucede que o questionário agora apresentado aos portugueses informa de um erro de tal forma grosseiro que só pode ser entendido como deliberado. Dito de outro modo, há uma desonestidade intelectual flagrante – e de modo algum inocente – na forma de classificação da resposta à questão de como é exercida a profissão indicada pelo inquirido. «Se trabalha a ‘recibos verdes’ mas tem um local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação hierárquica efectiva, e um horário de trabalho definido deve assinalar a opção ‘trabalhador por conta de outrem’» – é o que consta, preto no branco, no inquérito agora em curso.
Tendo presente que a situação descrita configura a situação de trabalho prestado com carácter permanente, logo com direito a vínculo efectivo, e não uma mera e eventual prestação de serviços, e sendo o inquérito da responsabilidade do Governo, cabe concluir: primeiro, que o Executivo não ignora a existência de falsos 'recibos verdes', embora nada faça para lhes pôr termo; segundo, que através do Censo pretende não só camuflar essa manifesta ilegalidade como apagá-la completamente da realidade nacional. Se dúvidas houvesse quanto a isso, elas foram desfeitas em recente debate no Parlamento, onde a questão foi levada a debate pela bancada comunista, sem que o Governo tivesse manifestado o menor sobressalto.
Não há notícia de que o inquérito tenha sido alterado, e para o PS nem há sequer necessidade de rever a legislação vigente, que, diz, «chega e sobra» para tratar do assunto, embora não explique como. E isto apesar de Portugal contar já com um milhão e 200 mil trabalhadores precários, o que coloca o País no terceiro lugar do ranking da precariedade na UE.
É de crer, face ao exposto, que a «solução» milagrosa do PS e demais direita para acabar com os 'recibos verdes' seja a do recurso à borracha. Apaga-se e pronto, deixam de constar das estatísticas oficiais. E como a nova legislação que está na forja quer acabar com o vínculo permanente, fica tudo nos conformes. Sem regra e sem excepção. E sem senso.