A burla

Correia da Fonseca

O programa «Plano Inclinado» existe na SIC-Notícias e, como aliás outros, está confiado à moderação e gestão do jornalista Mário Crespo. É, como se saberá, um programa vocacionado para abordar temas directamente relacionados com as finanças e a economia portuguesas e, como decerto também se vai sabendo, frequentado por um naipe de convidados pouco numeroso e escassamente diversificado. Acontece mesmo que essa escassa diversidade é um dos motivos que me suscitam desagrado: ainda mantenho o preconceito obsoleto de que um programa assim deve manter um mínimo de pluralidade de opiniões, isto é, um mínimo de decência quanto a democraticidade, e não me parece que «Plano Inclinado» se preocupe muito com isso. Vejo e oiço lá, aparentemente como figura residente, o fiscalista Medina Carreira, de assustador semblante e discurso terrorista. Tenho visto e ouvido por lá especialistas como o dr.Ernâni Lopes, usufrutuário de uma reforma opípara que não o impede de preconizar «a cru», para usar aqui a sua própria expressão, o corte radical de apoios estatais a quem deles precisa. Também o dr.João Duque, director do ISEG, por lá surge com frequência, e essa presença até me recorda que o nosso ensino universitário dedicado à Economia, às Finanças e à Gestão, está desde há muito dominado por filhotes certamente brilhantes do neoliberalismo born in USA. Quem eu nunca vi naquele programa é qualquer economista de pensamento claramente de esquerda, com perdão de alguma excepção que me tenha escapado, e compreender-se-á que note a falta. É que, ao contrário do que é sugerido por este e outros programas onde se fala de Economia e Finanças, há quem tenha acerca destas matérias uma visão de esquerda. E talvez fosse interessante e até enriquecedor dos próprios programas que fosse permitida a entrada de gente dessa nas conversas que neles acontecem e, ao acontecerem, são factor de formatação das opiniões dos telespectadores. Não há-de ser só para os chineses que desejamos o respeito pelo pluralismo.

 

O que sabemos

 

Sucedeu que no «Plano Inclinado» da passada semana esteve presente o senhor engenheiro Ângelo Correia, histórico do PSD, consta que conselheiro principal do dr. Pedro Passos Coelho e, como espero que ainda muitos se lembrem, antigo ministro da Administração Interna que se notabilizou por ter descoberto e vencido o que foi então designado por Revolução dos Pregos. Com tão interessante currículo, é natural que todas as suas palavras sejam ouvidas com acrescida atenção, e foi assim que as acompanhei naquela noite. Eis, porém, que a dada altura me senti fulminado de surpresa por uma informação que o senhor engenheiro dava ao País: a de que «os direitos adquiridos são uma burla». Assim, a cru, como diria o dr. Ernâni Lopes. E, para que não sobrassem dúvidas, Ângelo Correia identificou alguns dos tais direito que serão burla. É o direito dos cidadãos a que o Estado lhes garanta os cuidados médicos e medicamentosos que lhes permitam enfrentar a doença. Isto é, de facto, o direito à defesa da vida. É o direito à Educação, palavra correntemente usada para designar a Instrução, de modo a que os cidadãos possam emergir da situação inicial de analfabetismo e aceder a níveis de escolaridade que lhes permitam situações profissionais qualificadas que serão necessárias e úteis a si próprios mas também à comunidade de que fazem parte. Isto é, o direito à cidadania plena. É o direito ao apoio do Estado quando o patronato decide enviar o cidadão para o território negro do desemprego. Quer dizer, é o direito de defesa contra a miséria. E o senhor engenheiro Ângelo justificou a caracterização dos «direitos adquiridos» como burla: é que não há dinheiro para os pagar. Contudo, sabemos que muitos milhões de euros continuam a viajar para offshores sediados em parte incerta. Sabemos que os bancos, pagadores de impostos mínimos, continuam a exibir grossos lucros nas suas contas de resultados, e também que os resultados das grandes e muito proveitosas especulações financeiras continuam livres de incómodas taxas contributivas. Sabemos que, como Bernardino Soares lembrou a propósito de uma frase equivocada da drª. Manuela Ferreira Leite, é a banca que manda mas quem paga é o povo. Após o que, sabendo-se tudo isto e muito mais, se justificará decerto que se pergunte ao senhor engenheiro de que lado está a burla. E onde estão os burlões.



Mais artigos de: Argumentos

Subidas

A semana passada «fechou» com uma ligeira descida dos juros da dívida pública portuguesa a 10 anos (6,2%), mas na segunda-feira seguinte tudo voltou à mesma, e os tais juros atingiram novo recorde (6,9%), aproximando-se, ainda por cima, da ominosa fasquia dos 7%, estapafurdiamente...

A «crise global» e o dirigente voluntário

Uma das dificuldades para o Movimento Associativo enfrentar e equacionar o problema da «crise», reside no facto de muitos dos seus dirigentes não possuirem uma noção clara do seu significado. Uns afirmam que a antiga solidariedade social e dedicação à «causa...

Esboço de um «Novo Império» – II

As portas que Abril abriu voltaram a fechar-se, pelo menos parcialmente, como fica patente no triste espectáculo a que estamos a assistir. Separação de poderes, Constituição, democracia, governo das elites, intrigas palacianas, miséria e opulência, tudo surge aos olhos do...