Esboço de um «Novo Império» – II
As portas que Abril abriu voltaram a fechar-se, pelo menos parcialmente, como fica patente no triste espectáculo a que estamos a assistir. Separação de poderes, Constituição, democracia, governo das elites, intrigas palacianas, miséria e opulência, tudo surge aos olhos do nosso povo como uma telenovela protagonizada pelos grandes senhores. Telenovela nada inocente. Por detrás da encenação de tudo isto desenvolve-se um plano bem amadurecido. Mas um dia virá quando, depois de muito sofrer inutilmente, o mesmo povo português, já mais velho e lúcido, reabrirá com as suas mãos as mesmas portas de Abril.
No caso da Igreja, a hierarquia católica desempenha neste processo um papel determinante. Só ela dispõe de uma tradição nacional instalada desde há séculos, tantos quantos os que conta a nacionalidade do território. Só ela manipula na sombra valores de cariz religioso que emudecem revoltas, indignações e a justa ira popular. Só ela sabe unir os ricos e dividir os pobres. E, finalmente, só ela dispõe de um tentacular aparelho instalado na área social.
Alguns dados sobre o poder social da Igreja
Em termos estatísticos divulgados pela própria Igreja, estão em actividade em todo o território nacional (89 mil K2, 10 milhões de habitantes), 20 dioceses dispostas numa rede de 267 vigararias, 2667 paróquias e 2406 centros paroquiais.
Segundo as fontes referidas, 92,7% dos cidadãos portugueses são católicos praticantes ou culturalmente marcados pela religião católica. O enquadramento e a condução de toda a acção social católica está confiado a cerca de 46 bispos, 3100 padres regulares, 1000 sacerdotes do clero religioso (ordens religiosas), e 7000 freiras (ou religiosas professas). A formação deste potencial humano é garantida por 95 centros de instrução de candidatos ao sacerdócio. Completam estes quadros de formação de sacerdotes e leigos centenas de seminários, colégios e cursos sob a orientação central do Secretariado do Apostolado dos Leigos e da Comissão do Clero, Seminários e Vocações.
Na área social cuja importância se avoluma dia a dia, a igreja católica dispõe de mais de 1500 centros de assistência dispersos por hospitais, ambulâncias, dispensário, lares e casas para idosos e deficientes, orfanatos, creches, consultórios, consultadorias familiares e centros especiais de educação e reinserção.
Em todo este vasto universo assistencial, a acção católica é dirigida não só para o apoio ao doente ou ao cidadão necessitado mas, igualmente, para o reforço dos laços que ligam o doente e os seus quadros familiares à Igreja. Todos os vários níveis deste aparelho (que actua indistintamente, ao abrigo da concordata, em instituições católicas ou do Estado) estão interligados no esquema orgânico de funcionamento da igreja portuguesa: uma pirâmide onde a paróquia ocupa a base e a Conferência Episcopal, presidida pelo Patriarca de Lisboa, representa o cume, com poderes deliberativos e executivos finais. Note-se a identidade entre o esquema religioso e o organigrama político do Estado, também com sede em Lisboa e em vésperas de centralização de poderes.
Por outro lado, a CEP tem funções polivalentes e actua, tal como o Estado laico, no plano interno e no plano externo. No caso da CEP, esta estratégia apoia-se, sobretudo, nos organismos e organizações da Santa Sé (veja-se o papel da Nunciatura e as funções da Concordata); e nos invisíveis acordos com as centrais de topo das altas instituições políticas e financeiras do capitalismo.
A Igreja em Portugal constitui, de facto, um Estado dentro de um Estado. Nunca se identificou, não se identifica e jamais se identificará com os valores básicos da Revolução de Abril ou de qualquer outra revolução.Toda a filosofia eclesiástica, independentemente das transformações aparentes que a Igreja possa registar, obedece a dogmas imutáveis: o fraco submete-se ao forte, o pobre ao rico e a lei aos poderes dos ricos e dos fortes. «Deus o quer.»
A Igreja afirma-se como a potência mundial que é, muito provavelmente a mais rica do mundo capitalista. Tem de tudo: latifúndios, grupos financeiros e empresariais, lóbis e offshores, ligações às maiores sedes de interesses bolsistas e de actividades legais ou ilegais. Assim, a condução dos seus imensos negócios e das suas fortunas implica a sujeição às leis dos mercados. Esta escolha exigente entre a fé e o cifrão é fácil de detectar-se num pequeno país, como acontece na presente situação. A «crise» e os silêncios oficiais da hierarquia revelam que a Igreja oficial constitui um Estado no interior de outro Estado, bloqueado pelos seus interesses próprios e pelos seus dogmas; Estado que coexiste com um outro Estado, laico e republicano mas também ele rendido à escravidão do lucro e do dinheiro.
Ao povo compete lutar em defesa dos seus direitos. Sem dúvida que assim será.