O meu amigo Kralisch

Francisco Mota

Para o meu velho amigo Kralisch, que há tanto tempo não vejo

Elsterwerda – Alemanha

Eu e o Kralisch já éramos amigos há anos, porque ele vendia e eu comprava máquinas de ordenha mecânica da RDA. Essas máquinas tinham um bom êxito no mercado português.

Todos os anos eu tinha que ir às feiras de Leipzig em Março e em Setembro, porque assim ditavam as regras deste negócio. Leipzig, na RDA, era realmente o grande encontro do comércio entre o Leste e o Oeste. Hoje tem uma importância mínima. Todos os anos, pelo menos duas vezes me encontrava com o Kralisch e discutíamos preços, quantidades e problemas durante o dia, e, a partir das 5 da tarde, a Feira fechava e nós íamos para o belíssimo centro da cidade dar uma olhadela à Igreja de Santo Tomás, onde Bach tocou tantos anos e onde estreou tantas obras. Mais umas voltas e lá íamos nós para o Rathaus Keller (ou seja o restaurante da Câmara Municipal) velho hábito alemão de usar as caves dos edifícios das câmaras para pôr um restaurante, costume estendido por todo o país.

Outras vezes, muitas vezes, rumávamos ao Auerbachs Keller, cuja entrada estava presidida já nessa altura por uma estátua de Mefistófeles tentando convencer Fausto, cena de Goethe que não é a única passada neste restaurante de que era cliente assíduo, antes das estátuas como é óbvio. Aqui, a Goethe e a nós servia-se comida alemã, sólida, abundante e às vezes brutal.

Aí nos sentávamos, ele a falar alemão e eu tudo menos alemão. Isto não impedia que não nos entendêssemos e até que eu, feira a feira, fosse aprendendo uma quantidade já considerável de palavras que me permitiam falar alemão.

Atacávamos pratos enormes de schwein axle, jarrete de porco assado no forno acompanhado com saladas onde havia sempre couve roxa e branca e outras ervas, batatas também assadas e um molho espesso bastante saboroso. Doutras vezes a mesma carne, que previamente estava dois dias em salmoura e era injectada com uma seringa com a mesma salmoura. Esta carne era cozida (eisbein) e acompanhada com sauerkraut, ou seja choucrute em francês, ou seja couves cozidas com especiarias, sobretudo bagas de zimbro, que depois ficam a fermentar uns dias, o que lhes confere um cheiro e sabor ácido, mas saboroso. Normalmente além do jarrete apareciam salsichas enormes e toucinho entremeado. O prato com tudo isto era uma montanha de carne e couves. Enfim: uma enormidade. Também tragávamos goulasch de veado com massa grossa, pesado, mas gostoso e de carne tenra. As quantidades, sempre enormes. É difícil imaginar as litradas de cerveja que era preciso beber para empurrar tudo para baixo. O meu amigo começava logo com canecas de litro. Eu, reservando-me, ficava-me pelas de meio-litro.

Os alemães das diferentes fábricas da RDA eram deslocados durante a semana da Feira para Leipzig e viviam em internatos, grandes casas, onde jantavam e tomavam o pequeno-almoço. Não era suposto que os estrangeiros fossem a essas casas. Na noite em que se selou para sempre a nossa amizade o Kralisch convidou-me a ir comer ao sítio onde ele ficava. Como sempre, neste caso e em todos os que vivi na minha vida, aproveitei para ver um mundo desconhecido. Chegámos. Havia centenas de pessoas sentadas, todas alemãs, e um serviço de restaurante impecável. Atirámo-nos a um pato assado e a um grande bocado de carne assada, que não destoavam dos sítios onde íamos nos outros dias.

Eu estava preocupado porque a diferença de preços entre o que eles pediam e o que eu queria pagar era grande. Kralisch notou isso e eu confirmei-lho. Ele virou-se para uma empregada, bastante atractiva, para que conste, e pediu-lhe dois gentleman fruhstuck (pequeno-almoço de cavalheiros). Daí a pouco chegaram à mesa duas canecas de litro de cerveja e ao lado dois copos de dopfell korn, aguardente de cereais, parecido com o vodka. Mais de 40 graus de álcool. O Kralisch agarrou com cuidado os copos de Korn e deixou-os cair na vertical dentro da cerveja. Lá ficaram. Levantamos as canecas, com o acrescento de vidro lá dentro e disse-me: «não te preocupes com os preços. Amanhã vamos aceitar o que tu quiseres. És o nosso melhor cliente.»

Bebemos aquela barbaridade alcoólica, abraçámo-nos, tentámos manter os olhos abertos, pensando eu, nebulosamente, como me levantaria da mesa.



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