Cambalacho

Anabela Fino

O exercício penoso de assistir à triste figura de Sócrates a falar «portunhol» para um grupo de empresários espanhóis revelou-se, por mais estranho que pareça, assaz gratificante. Se em boa verdade podemos dizer que não é preciso «pôr mais na carta» para caracterizar o primeiro-ministro português como um serventuário fiel do capital, arrogante e demagogo cá dentro e subserviente lá fora, não é menos verdade que não há nada mais esclarecedor do que ver e ouvir o próprio fazendo (involuntariamente, supomos) o auto-retrato.

Na realidade, o esboço começou a delinear-se uns dias antes da visita ao país vizinho e após uma chamada à pedra de Bruxelas onde o Governo foi receber a sebenta, que é como quem diz o caderno de encargos a apresentar aos portugueses, que entretanto andavam a ser distraídos com festividades do futebol e da fé, para já não falar do regresso em força dos espectáculos de fado, que isto do triunvirato dos efes é de triste memória e tal como nos tempos do fascismo presta-se a trocadilhos impróprios da letra de forma, embora muito vernáculos. Foi por essa altura, se bem se lembram, que Sócrates e o nóvel dirigente do PSD, Passos Coelho, afirmaram a vontade de cumprir o destino para que foram talhados os dois partidos, a saber, serem farinha do mesmo saco para amassar as políticas de direita ao serviço do neoliberalismo económico, social, político e cultural. Oficializando a partilha de poder que os anima, numa espécie de casamento de conveniência com serventia de cozinha, ambos vieram a público como salvadores da pátria, um pedindo desculpa por dar o nó e outro eufórico por ter garantida tão prestimosa mão para o segurar.

Depois disso, Sócrates não parou de se exibir. Em conferência de imprensa equiparou o aumento do preço do pão e do leite ao aumento da coca cola; em Ponte da Barca falou do «pequeno contributo» pedido aos portugueses para equilibrar as contas públicas – entendendo por «pequeno contributo» as reduções de salários, das pensões, dos subsídios; o aumento do IRS, do IVA e de outros impostos; cortes drásticos nas despesas sociais, aumento do desemprego, precariedade, etc., etc., etc. –, pondo como contraponto na balança a migalha cobrada a gestores e à banca; em Espanha gabou a flexibilidade das leis laborais portuguesas, a mão-de-obra barata e as potencialidades que se oferecem ao investimento estrangeiro, a par da garantia de estabilidade conseguida com o «apoio patriótico» do PSD ao garrote imposto aos trabalhadores e ao povo. Foi justamente neste ponto, portunholmente falando, que Sócrates completou o seu retrato dizendo que agora já tem parceiro para «dançar o tango». Dado o contexto, só podia estar a pensar no famoso Cambalache do argentino Discépolo, debochada canção sobre as indignidades do mundo: «Que o mundo foi e será uma porcaria / Já sei / em 506 / e em 2000 também / que sempre houve safados / malandros e gatunos / (...) / século XX, cambalacho / problemáttico e febril / o que não chora não mama / e o que não rouba é imbecil (...).

Ao som dos cambalachos, os pares acertam o passo. Já vai sendo tempo de encerar o palco.



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