Haiti: de país independente a base militar?

Pedro Campos
De Haiti nunca se fala. A quem interessa um país onde mais de 60% das crianças têm anemia, 23,8% da população sofre de subalimentação crónica e o coeficiente Gini – que mede a desigualdade – é o mais alto da América Latina: 0,66? Algo de muito grave tem de se passar para que apareça nos média. Um terremoto devastador é boa razão. Haiti torna-se visível, mas – como quase sempre – ficamos a saber muito pouco do país real.
Em 1492 Cristóvão Colombo chegou à Espanhola (Quisqueia, no original), onde habitavam os arawaks e os taínos. Dos habitantes originais já nada fica, que foram aniquilados. Os espanhóis começaram o genocídio e os franceses vieram logo a seguir. Como quem divide reina, em 1697, a ilha, então próspera, foi dividida. A França ficou com a parte ocidental (Haiti) e Espanha com a oriental (República Dominicana).
Aniquilados os nativos, começaram a chegar escravos africanos a um ritmo de 20 mil por ano. São os seus descendentes os que, hoje, conformam, na sua esmagadora maioria, o povo do Haiti.
Ao tempo da Revolução Francesa o número de escravos no Haiti andava perto do meio milhão. Os brancos e os mulatos aproximavam-se dos 60 mil. Mas quem tinha o poder sobre a terra e a riqueza era uma minoria de 20 mil brancos. Vista hoje, a proporção não é muito diferente.
Haiti é hoje o país mais pobre e atrasado da região. Mas épocas houve em que esteve entre os da vanguarda. Entre 1791 e 1803, o ex-escravo Toussaint L’Ouverture, inspirado pelo ideais de 1789, encabeçou uma guerra revolucionária que terminou com a proclamação da primeira república negra do mundo. Outro dado interessante: em 1794 obteve da Convenção Nacional francesa que o nomeasse general e que ratificasse a abolição da escravidão. Cinco anos depois, Napoleão quer restabelecê-la e envia 50 navios cheios de soldados, que são derrotados pelo escravo convertido em general. Contudo, o preço é altíssimo. Os haitianos herdam um país arrasado por uma guerra sem trégua e uma «dívida francesa» de 150 milhões de francos ouros. Segundo Eduardo Galeano, esse valor equivale hoje a 21 700 milhões de dólares ou 44 vezes o orçamento total do Haiti actual. O país nasce com um baraço ao pescoço e levará mais de um século a desembaraçar-se dessa dívida. Para então (1938) já tinha dono: os Estados Unidos, que tardará 60 anos a reconhecer o seu vizinho! Mas outros viraram também as costas ao novo país. Até a Venezuela se revela ingrata. Quando o futuro Libertador chega derrotado a Haiti e pede ajuda, recebe barcos e armas de Pétion a troco do compromisso de declarar a liberdade dos escravos venezuelanos. Uma vez vencedor, Bolívar agradece a Pétion enviando-lhe como presente uma espada mas esquece-se do reconhecimento oficial de Haiti. A abolição da escravidão tem lei de 1821, mas vai durar até 1854.

Washington passa à acção directa

Em 1919 os Estados Unidos invadem a ilha para impor a «sua» ordem. Começam por se apoderar da alfândega e o presidente haitiano só recebe o ordenado quando aceita liquidar o banco da nação, que passa a sucursal do Citibank! Os invasores ficam até 1934, mas, entretanto, pregam em cruz, numa porta de uma praça pública, o corpo do chefe rebelde Charlemagne Péralte.
Quase sempre sob a tutela de Washington o país vai de ditadura em ditadura até que chega a vez de Duvalier, que se declara presidente vitalício e a quem sucede o filho, Baby Doc, que somou 50 mil mortos. Anos mais tarde, em 1991, aparece Aristide. Não é do gosto dos EUA e só dura uns meses na presidência. Os marines derrubam-no. Aristide é «reciclado» e regressa à presidência pelos mesmos que o derrubaram e o voltarão a fazer em 2004, perante o silêncio das democracias ocidentais.
E assim, de ditadura em ditadura, de massacre em massacre, chegamos a 2010. Agora é a natureza quem castiga o Haiti. E como toda a desgraça sempre aproveita a alguém, os EUA voltam a aparecer como «salvadores» e, no meio de dezenas de milhares de mortos e ainda mais feridos, mandam uns quantos milhares mais de soldados para um Haiti absolutamente arrasado e com mais do que duvidosas possibilidades de reconstrução. Porquê tantos soldados e tão pouco pessoal médico? Porque Haiti pode ser transformado numa enorme e «excelente» base militar contra uma América Latina que não quer continuar a ser o quintal das traseiras do império. Não estranha então que o atendimento médico dos cubanos supere 20 vezes o dos norte-americanos! O império regressou para ficar.


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