Haiti

Contrastes de classe

O terremoto no Haiti desnudou a indigência a que o capitalismo votou o país. O imperialismo prepara-se agora para o ocupar e fazer milhões com a reconstrução e a exploração dos seus recursos naturais.

O grau de concentração da riqueza é o mais elevado da região

O Haiti revela a impiedosa lógica do sistema. Nem o facto de Port-au-Prince ter ficado em escombros, e três milhões de habitantes se encontrarem imersos em entulho compadece as classes dominantes. As campanhas e as palavras graves escondem a operação em curso: trata-se de uma ocupação cujo resultado será o avolumar da tragédia social que emergiu com a catástrofe, um negócio de milhões e uma manobra do volte-face que o imperialismo procura na América Latina (Honduras, provocações a partir de Curaçao, bases na Colômbia).
Os EUA tomaram de assalto o aeroporto e o palácio presidencial e enviaram para o território, onde curiosamente já têm a quinta maior embaixada do mundo, um contingente militar multidisciplinar que superava em 30 vezes os profissionais de saúde destacados. Com os dez mil soldados já estacionados no Haiti, antes do terremoto, sob mandato da ONU, o total de tropas estrangeiras per capita supera o do Afeganistão.
A prioridade de Washington não foi aterrar ajuda alimentar e equipas de salvamento, mas fazer chegar ao território milhares de soldados, um porta-aviões nuclear, submarinos e outros vasos de guerra. O Comando Sul do Pentágono, cuja função é promover a estratégia de Washington na região, responde pelas movimentações e entregou à USAID – agência com provada cobertura à espionagem da CIA, e destreza na adjudicação de contratos faraónicos de «ajuda humanitária» e reconstrução (Iraque, Afeganistão) – a distribuição de víveres e outros bens fundamentais.
O navio-hospital dos EUA atendeu 10 pessoas nos primeiros dias após o sismo, mostrando ser apenas retaguarda dos EUA, os quais, disse Hillary Clinton, ficarão no Haiti «hoje, amanhã, e no futuro».
A França e o Brasil protestaram. O embaixador gaulês referiu-se ao aeroporto como um apêndice de Washington. Paris pediu à ONU a definição do papel dos EUA e lembrou que se trata de «ajudar, não ocupar o Haiti». O chefe da protecção civil italiana acrescentou que os EUA confundem ajuda humanitária com militar, e considerou que na plataforma logística a prioridade, mais que acelerar o auxílio à população, é identificar os pacotes de ajuda com uma chancela que brilhe na televisão.
Protestos idênticos mais bem contundentes foram feitos por Cuba, Bolívia, Nicarágua e Venezuela.

Resultado da dependência

A informação dominante mostra o desespero e a destruição; empola motins, saques e crenças pagãs para justificar a imagem de uma nação arcaica, «naturalmente» caótica, sobrepovoada, ingovernável, veiculando teses colonialistas de cariz racista.
O que fica por descortinar é que as consequências do terremoto remontam ao passado. Olhando apenas para os últimos 20 anos, os bairros arrasados já careciam de saneamento básico, electricidade e água potável. Os milhares de sem-abrigo, famintos, moribundos sem assistência médica já lutavam pela sobrevivência.
Os números são claros: 80 por cento dos haitianos vivem abaixo do limiar da pobreza e o país é dos últimos no índice de desenvolvimento humano. O analfabetismo rural é de cerca de 70 por cento e o urbano de mais de 50 por cento. A mortalidade infantil supera os 80 por mil.
Nenhuma catástrofe natural trouxe os haitianos até aqui nestas condições. Foram os dois golpes de Estado promovidos pela Casa Branca - em 1991, nas primeiras eleições livres, e em 2004, no bicentenário da primeira vitória sobre o colonialismo esclavagista na América Latina - que derrubaram Jean-Bertrand Aristide colocando no lugar do «padre dos pobres» o actual presidente, René Preval.
Foi pela cartilha do capital que se arruinou a agricultura de uma nação de solos férteis, que passou a importar arroz, trigo e açúcar, e empurrou milhares de camponeses e assalariados rurais para Port-au-Prince, fazendo crescer as favelas que agora desabaram.
Foi sob Préval que se privatizaram portos de águas profundas que poderão servir para escoar o petróleo que alguns sustentam existir no Haiti, e os recursos minerais que todos concordam estarem subexplorados; que se vendeu, para logo desmantelar, as empresas estatais de moagem de trigo e produção de cimento, bens essenciais que no actual contexto o Haiti vai importar a elevado preço; que se distribuiu por três empresas os serviços de comunicações que tanta falta fazem às equipas solidárias.
Foi também o presidente e o «amigo» yankee quem, contra a Constituição do país, impuseram a presença militar estrangeira, da qual não resulta a construção de qualquer infra-estrutura ou sequer a prometida força local de ordem pública (adjudicada mas nunca concretizada à DynCorp, companhia mercenária com serviço nas guerras de ocupação do imperialismo).
A missão militar da ONU delega apenas um rasto de repressão contra o povo que, bem recentemente, se manifestou contra as eleições, a inflação e o desemprego, e pelo aumento dos salários miseráveis pagos nas fábricas das multinacionais.
Foi aplicando a receita imperialista que o governo deu às grandes ONG’s serviços públicos, e é para estas, e só para elas, que os EUA já antes canalizavam os milhões de dólares de «ajuda».
Era bom escrutinar como ficaram os bairros onde habita a elite haitiana. O grau de concentração da riqueza no Haiti é o mais elevado da América Latina, superando inclusivamente o do Brasil, país ao qual nos referimos como de «contrastes». Contrastes de classe que saltam à vista na tragédia haitiana.


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