Milagres
Com a lareira em fundo e uma intimidade encenada ao milímetro, o primeiro-ministro falou ao País no Dia de Natal como se lhe depositasse no sapatinho um saco de prendas. E, com severa bonomia - porque o respeitinho é muito bonito, sobretudo em dias de festa -, derramou pelo éter pátrio as rosas dos seus milagres.
«O ano de 2009 ficou marcado em Portugal como, de resto, em todos os países do mundo, pelos efeitos da maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos. Este foi, portanto, um ano de grande exigência para todos, famílias, trabalhadores e empresas».
Era o primeiro milagre – embora um tanto já visto, no seu repertório de quase cinco anos de governança: o de que as enormes dificuldades que os trabalhadores, os cidadãos em geral e o País em particular viram agravar-se, a galope, nos últimos cinco anos vêm, todas, «da maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos» - ou seja «do estrangeiro». O seu Governo nada teve a ver com o caso e se as «grandes exigências» tocaram a todos, o Executivo Sócrates foi o primeiro a dar o peito às balas: ele é que aguentou estoicamente, por trás de sólidos ordenados, prebendas e regalias os protestos desvairados das multidões de descontentes e de desempregados, que inundaram em maremoto as avenidas do País.
Quanto ao facto de todos esses protestos terem crescido ao longo do seu Governo, para se insurgirem contra as políticas que foram desmanteleando, peça a peça, as conquistas sociais trazidas pela Revolução de Abril e consolidadas com o regime democrático, nada disso foi reconhecido por Sócrates no seu entremez natalício ao calor da lareira. Nem que foram essas políticas que impuseram um Código do Trabalho à medida do patronato, que desarticularam carreiras, direitos e pensões à Função Pública, que degradaram a carreira docente e desacreditaram o ensino público, que denegriram estatutos e direitos a magistraturas, a militares e a forças policiais, que definharam o Serviço Nacional de Saúde enquanto foram abrindo caminho aos privados nos negócios hospitalares, que acabaram com subsistemas de Saúde para «nivelar por baixo» a falta generalizada de assistência médica e medicamentosa, que, finalmente, escancararam as portas à gula patronal na exploração desenfreada dos trabalhadores e os recursos do País à voracidade dos grandes grupos económicos.
«A crise económica mundial», prosseguiu ele, «persiste, é certo, mas há agora sinais claros de que estamos a retomar lentamente um caminho de recuperação».
Era o segundo milagre, mas este tão misterioso, que entrou directamente no mundo da transcendência: José Sócrates foi o primeiro governante do mundo a ver não apenas «sinais», mas «sinais claros» da «retoma» do que ele próprio classificou de «maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos».
Seria agora vantajoso para o País – e quiçá para o mundo – que o primeiro-ministro explicasse onde estão esses «sinais», para si tão «claros», de uma retoma que ninguém vê, pelo linear facto de ninguém fazer a mais pálida ideia onde é que a actual crise capitalista vai desembocar, a par de uma única outra coisa, em que toda a gente concorda: a de que essa crise continua em desenvolvimento, avolumando-se diariamente as supeitas de que o pior ainda não chegou.
Mas também é verdade que ninguém costuma terminar licenciaturas em engenharia em quatro meses, enquanto trabalha numa secretaria de Estado. E os milagres não estão ao alcance de qualquer um, essa é que é essa.
«O ano de 2009 ficou marcado em Portugal como, de resto, em todos os países do mundo, pelos efeitos da maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos. Este foi, portanto, um ano de grande exigência para todos, famílias, trabalhadores e empresas».
Era o primeiro milagre – embora um tanto já visto, no seu repertório de quase cinco anos de governança: o de que as enormes dificuldades que os trabalhadores, os cidadãos em geral e o País em particular viram agravar-se, a galope, nos últimos cinco anos vêm, todas, «da maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos» - ou seja «do estrangeiro». O seu Governo nada teve a ver com o caso e se as «grandes exigências» tocaram a todos, o Executivo Sócrates foi o primeiro a dar o peito às balas: ele é que aguentou estoicamente, por trás de sólidos ordenados, prebendas e regalias os protestos desvairados das multidões de descontentes e de desempregados, que inundaram em maremoto as avenidas do País.
Quanto ao facto de todos esses protestos terem crescido ao longo do seu Governo, para se insurgirem contra as políticas que foram desmanteleando, peça a peça, as conquistas sociais trazidas pela Revolução de Abril e consolidadas com o regime democrático, nada disso foi reconhecido por Sócrates no seu entremez natalício ao calor da lareira. Nem que foram essas políticas que impuseram um Código do Trabalho à medida do patronato, que desarticularam carreiras, direitos e pensões à Função Pública, que degradaram a carreira docente e desacreditaram o ensino público, que denegriram estatutos e direitos a magistraturas, a militares e a forças policiais, que definharam o Serviço Nacional de Saúde enquanto foram abrindo caminho aos privados nos negócios hospitalares, que acabaram com subsistemas de Saúde para «nivelar por baixo» a falta generalizada de assistência médica e medicamentosa, que, finalmente, escancararam as portas à gula patronal na exploração desenfreada dos trabalhadores e os recursos do País à voracidade dos grandes grupos económicos.
«A crise económica mundial», prosseguiu ele, «persiste, é certo, mas há agora sinais claros de que estamos a retomar lentamente um caminho de recuperação».
Era o segundo milagre, mas este tão misterioso, que entrou directamente no mundo da transcendência: José Sócrates foi o primeiro governante do mundo a ver não apenas «sinais», mas «sinais claros» da «retoma» do que ele próprio classificou de «maior crise económica e financeira dos últimos 80 anos».
Seria agora vantajoso para o País – e quiçá para o mundo – que o primeiro-ministro explicasse onde estão esses «sinais», para si tão «claros», de uma retoma que ninguém vê, pelo linear facto de ninguém fazer a mais pálida ideia onde é que a actual crise capitalista vai desembocar, a par de uma única outra coisa, em que toda a gente concorda: a de que essa crise continua em desenvolvimento, avolumando-se diariamente as supeitas de que o pior ainda não chegou.
Mas também é verdade que ninguém costuma terminar licenciaturas em engenharia em quatro meses, enquanto trabalha numa secretaria de Estado. E os milagres não estão ao alcance de qualquer um, essa é que é essa.