Os pobres que tenham a culpa
Mais um. Já têm sido tantos que nem tive a preocupação de tomar-lhe nota do nome, confiado em que a memória mo guardaria. Não guardou.
Mas lembro-me perfeitamente, isso sim, de que tinha o aspecto do costume nestes casos: ainda relativamente jovem de aparência, bem vestidinho, gravata. Vermelha a gravata, e até recordo de ter lembrado que as gravatas vermelhas parecem estar muito na moda, usadas por quem precisamente só na gravata opta por essa cor. Pelo que lhe ouvimos, seria uma criatura híbrida entre o gestor e o politólogo, espécie biológica esta de aparecimento recente, o que sugere que o interesse pela vida política, o seu estudo e as reflexões que ela suscita, são fenómenos novos na vida dos homens em sociedade, o que é curioso. Por sinal, a avaliar pelo cortejo destes sábios que vêm desfilando na televisão, não há politólogos de esquerda, o que também é interessante. Quanto a este, o que de mais importante disse foi que os trabalhadores continuam a ganhar de mais, que com este alto nível de remunerações da mão-de-obra não há economia que aguente. Não utilizou estas palavras, mas foi claramente este o sentido do que disse. Invocando a competitividade, é claro, como aliás é costume nestes casos que se repetem muito na TV, pelo que me atrevi a escrever «mais um» no início destas linhas. Acontece mesmo que, sendo o essencial dos testemunhos destes técnicos tão repetitivos e iguais entre si como gotas de água a pingar da mesma torneira, fossem eles comunistas e logo haveria vozes a denunciar a reutilização da mesma velha cassete. Mas comunistas é que eles não são, nunca um comunista viria à televisão dizer que os trabalhadores ganham de mais. Não por «razões ideológicas», como qualquer politólogo seria capaz de diagnosticar, mas sim, bem mais simplesmente, porque os comunistas são gente séria.
Uma luminosa síntese
Ninguém pode surpreender-se por virem à televisão sujeitos sapientes, de gravata vermelha ou não, dizerem que os trabalhadores ganham muito: bem se sabe que para certa gente será sempre mal empregado o dinheiro de um salário que poderia ser muito melhor aplicado se servisse para ajudar à troca do carro, de custo obviamente imputado à empresa, em que o senhor gestor irá deslocar-se, talvez até de férias no próximo Verão. Porque as férias verdadeiramente grandes hão-de continuar a despeito das crises, e os dados que a TV divulgou na chamada Quadra Festiva acerca dos voos esgotados para destinos turísticos de que a generalidade dos trabalhadores apenas ouve falar são um bom indicador da invulnerabilidade desses períodos de justíssimo e indispensável repouso para quem tem a extenuante tarefa de dar ordens se a tanto chegarem as suas funções. Entretanto, porém, há essa coisa desagradável da crise nascida na Grande América. Quando ela estoirou, surgiram muitas vozes a dizerem que a culpa era do sistema financeiro, expressão frequentemente usada como pseudónimo do capitalismo na sua fase actual, e, como se sabe, houve mesmo quem falasse em Marx e no marxismo, o que vinha sendo praticamente proibido entre pessoas de bom gosto. Mas agora a tarefa é não só a de resistir ao tsunami que veio por aí abaixo e ameaça prosseguir mas também a de encontrar suspeitos a quem possam ser passados os custos da operação de recuperação. Ora, é claro que os trabalhadores estão mesmo a jeito para suportarem esse papel: porque precisam de sobreviver, é de esperar que se sintam inteiramente dependentes e por isso aceitem tudo. Quem porventura duvide de que esta é pelo menos uma das linhas estratégicas da direita bem pode atentar nas palavras do dr. Pacheco Pereira, que há poucos dias, numa das suas luminosas sínteses, escreveu que para o trabalhador mais vale ter um emprego mal pago e precário que estar desempregado. É, já se vê, uma outra maneira de dizer que é legítimo, defensável e até conveniente, pagar pouco a quem trabalha. Provavelmente porque já se lhes paga de mais. E para que tudo ganhe uma sólida justificação moral, convém dizer que a culpa de todos os males e de todas as dificuldades é deles, dos trabalhadores. Perante a conhecida modéstia da remuneração do trabalho em Portugal, comprovada pelos dados oficiais, bem se poderá entender, então, que a culpa é dos pobres. O que justificará que, como se pretende, a exploração continue.
Mas lembro-me perfeitamente, isso sim, de que tinha o aspecto do costume nestes casos: ainda relativamente jovem de aparência, bem vestidinho, gravata. Vermelha a gravata, e até recordo de ter lembrado que as gravatas vermelhas parecem estar muito na moda, usadas por quem precisamente só na gravata opta por essa cor. Pelo que lhe ouvimos, seria uma criatura híbrida entre o gestor e o politólogo, espécie biológica esta de aparecimento recente, o que sugere que o interesse pela vida política, o seu estudo e as reflexões que ela suscita, são fenómenos novos na vida dos homens em sociedade, o que é curioso. Por sinal, a avaliar pelo cortejo destes sábios que vêm desfilando na televisão, não há politólogos de esquerda, o que também é interessante. Quanto a este, o que de mais importante disse foi que os trabalhadores continuam a ganhar de mais, que com este alto nível de remunerações da mão-de-obra não há economia que aguente. Não utilizou estas palavras, mas foi claramente este o sentido do que disse. Invocando a competitividade, é claro, como aliás é costume nestes casos que se repetem muito na TV, pelo que me atrevi a escrever «mais um» no início destas linhas. Acontece mesmo que, sendo o essencial dos testemunhos destes técnicos tão repetitivos e iguais entre si como gotas de água a pingar da mesma torneira, fossem eles comunistas e logo haveria vozes a denunciar a reutilização da mesma velha cassete. Mas comunistas é que eles não são, nunca um comunista viria à televisão dizer que os trabalhadores ganham de mais. Não por «razões ideológicas», como qualquer politólogo seria capaz de diagnosticar, mas sim, bem mais simplesmente, porque os comunistas são gente séria.
Uma luminosa síntese
Ninguém pode surpreender-se por virem à televisão sujeitos sapientes, de gravata vermelha ou não, dizerem que os trabalhadores ganham muito: bem se sabe que para certa gente será sempre mal empregado o dinheiro de um salário que poderia ser muito melhor aplicado se servisse para ajudar à troca do carro, de custo obviamente imputado à empresa, em que o senhor gestor irá deslocar-se, talvez até de férias no próximo Verão. Porque as férias verdadeiramente grandes hão-de continuar a despeito das crises, e os dados que a TV divulgou na chamada Quadra Festiva acerca dos voos esgotados para destinos turísticos de que a generalidade dos trabalhadores apenas ouve falar são um bom indicador da invulnerabilidade desses períodos de justíssimo e indispensável repouso para quem tem a extenuante tarefa de dar ordens se a tanto chegarem as suas funções. Entretanto, porém, há essa coisa desagradável da crise nascida na Grande América. Quando ela estoirou, surgiram muitas vozes a dizerem que a culpa era do sistema financeiro, expressão frequentemente usada como pseudónimo do capitalismo na sua fase actual, e, como se sabe, houve mesmo quem falasse em Marx e no marxismo, o que vinha sendo praticamente proibido entre pessoas de bom gosto. Mas agora a tarefa é não só a de resistir ao tsunami que veio por aí abaixo e ameaça prosseguir mas também a de encontrar suspeitos a quem possam ser passados os custos da operação de recuperação. Ora, é claro que os trabalhadores estão mesmo a jeito para suportarem esse papel: porque precisam de sobreviver, é de esperar que se sintam inteiramente dependentes e por isso aceitem tudo. Quem porventura duvide de que esta é pelo menos uma das linhas estratégicas da direita bem pode atentar nas palavras do dr. Pacheco Pereira, que há poucos dias, numa das suas luminosas sínteses, escreveu que para o trabalhador mais vale ter um emprego mal pago e precário que estar desempregado. É, já se vê, uma outra maneira de dizer que é legítimo, defensável e até conveniente, pagar pouco a quem trabalha. Provavelmente porque já se lhes paga de mais. E para que tudo ganhe uma sólida justificação moral, convém dizer que a culpa de todos os males e de todas as dificuldades é deles, dos trabalhadores. Perante a conhecida modéstia da remuneração do trabalho em Portugal, comprovada pelos dados oficiais, bem se poderá entender, então, que a culpa é dos pobres. O que justificará que, como se pretende, a exploração continue.