Convite para a morte

Correia da Fonseca
Em 1994, na Marinha Grande, um homem suicidou-se ingerindo cumulativamente duas substâncias tóxicas que lhe provocaram uma agonia de cerca de dois dias. Na altura ninguém soube do caso para além da comunidade local, então violentamente agitada por graves acontecimentos sociais. Alguns milhares de telespectadores souberam dessa tragédia, aliás inserida num amplo conjunto de dramas então vividos na Marinha Grande, graças a uma reportagem transmitida pela SIC no passado domingo enquanto a esmagadora parte do telepúblico estaria, como é legítimo supor, a acompanhar a angustiante exibição da equipa portuguesa perante a da Suíça. É que angústias, há-as muitas, de diversos tipos e intensidades, a cada qual cabendo as que mais condicentes com as suas próprias preocupações e também com o seu grau de lucidez perante o que vai acontecendo no mundo. Quero crer que apesar da vaga de embandeirado patriotismo que o Euro 2008 fez crescer em todo o País ainda sobraram muitos telespectadores para no domingo trocarem a TVI pela SIC, a ligação a Basileia pela revisita à Marinha Grande de 1994, ao tempo em que a vidreira Manuel Pereira Roldão fechou após longo tempo de salários em atraso lançando para o desemprego cerca de quatrocentos trabalhadores, em que estes e a população com eles solidária veio protestar para as ruas que eram suas, em que a GNR se notabilizou pela violência de cargas indiscriminadas não só sobre os que se manifestavam mas também sobre os que estavam por perto, quando até o pároco local foi espancado. Quanto ao operário suicida, pelo menos quanto àquele de que a reportagem especialmente falou, soubemos agora que escolheu a morte por não poder suportar a angústia perante uma dívida de cerca de 500 contos contraída ao longo do tempo em que ainda tinha trabalho mas já não tinha salário. Decerto que aquela foi a única saída que a sua condição de homem honrado encontrou para a vergonha sentida perante a impossibilidade de pagar o que devia ou, dizendo-o de outro modo, de continuar a viver de cabeça levantada. Outros, seguramente não menos honrados mas diferentes, recusaram o convite macabro que o desemprego e tudo quanto o precedera lhes mandaram. Porque, como bem se sabe, há reacções diversas e diferentes a situações semelhantes.
Viver em civilização
Uma coisa é certa: o desemprego após décadas de trabalho, de dificuldades uma a uma ultrapassadas, de canseiras e também de dedicação a uma empresa onde se envelheceu pelo menos um pouco; o desemprego em que não poucas vezes aos salários não pagos se somam as indemnizações devidas mas nunca entregues aos trabalhadores a quem foi retirado o emprego e muitas vezes fechado o caminho para um futuro laboral; esse desemprego é de facto um convite para a desistência de tudo, isto é para a morte. É claro que esse convite é preciso recusá-lo, que também nessa terrível situação é preciso lembrar que a luta continua; mas não é legítima a exigência da recusa, quer dizer, não é legítimo acrescentar à violência do desemprego imposto a violência da condenação póstuma de quem não suportou o desespero. Ora, é duvidoso que tenha sido por mero acaso que a reportagem transmitida pela SIC tenha surgido num tempo em que os despedimentos, a deportação de trabalhadores para situações de desespero, para desertos de expectativas e de esperanças, se multiplicam por todo o País. A questão é que de Norte a Sul, embora porventura ainda mais numas regiões que noutras, como miúda chuva negra chovem os convites para a morte que são os despedimentos, muitas vezes anunciadores da aproximação de tempos de verdadeira fome, sempre de gravíssimos naufrágios de projectos familiares aliás elementares: a vida escolar dos filhos, uma casa para morar, a ajuda a pais velhos e doentes. Mas tais convites, que comparei agora mesmo a uma chuva sinistra, não caiem do céu, saem da vontade e das mãos de gente com poder, e é claro que nisso está toda a diferença. Por isso não é caso para contra eles se abrirem guarda-chuvas mas sim de lembrar direitos, de reivindicar o respeito por eles. De lembrar com suficiente veemência a quem o esqueceu ou finge ter esquecido o que é viver em civilização e não em barbárie informatizada.


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