Umas e outras

Correia da Fonseca
No passado dia 8, Dia Internacional da Mulher, a televisão veio recordar aos esquecidos, que são muitos, que em certos segmentos da população serão talvez quase todos, fragmentos do quotidiano de algumas mulheres portuguesas. Entre os três ou quatro casos mais relevantes, escolho de facto ao acaso, para lembrar aqui, o de uma das mulheres que como centenas de outras trabalha em Lisboa e reside numa das localidades-dormitórios que nas últimas décadas se têm expandido na margem sul do Tejo. É ainda relativamente jovem mas já é «mãe de família», com marido, filhos e casa para cuidar. Por isso se levanta às cinco horas da madrugada: há que fazer o almoço para o resto da família, que deixar o pequeno almoço feito (presume-se que será o marido, provavelmente a trabalhar na Margem Esquerda, a levar as crianças à escola antes de seguir para o seu emprego), que dar ainda um superficial jeito à casa, após o que sai para ir tomar o autocarro que a levará para perto do barco que a trará para Lisboa. O tempo da travessia do Tejo é um tempo de algum descanso, de poder sentar-se, mas o local de trabalho não está à sua espera junto do pontão de desembarque na capital: há que correr para a fila que espera o autocarro, que conseguir neste um lugar que muito provavelmente será de pé, que ser sacolejada dentro dele durante mais uns minutos. Quando enfim chega ao emprego está, naturalmente, estafada. Só então iniciará o período das sete, oito ou mais horas do trabalho profissional. Findo este, será o percurso de retorno: mais filas, mais corridas, mais mudanças de transporte. Chegada a casa, esperam-na marido, filhos e trabalhos domésticos, admitindo-se embora que marido tenha adiantado muita coisa. Jantar, pôr a cozinha em ordem, preparar alguma coisa para o dia seguinte, deitar entretanto uma olhadela à televisão, deitar os filhos, recolher ao quarto com pressa de adormecer porque, já se sabe, no dia seguinte vai ser preciso levantar-se às cinco horas da madrugada. E esta é, em traços gerais, não a rotina de uma mulher portuguesa que a reportagem escolheu, mas sim a de centenas de outras que não cabiam na reportagem. E também, mais hora menos hora, a de milhares de outras mulheres que não residem do lado sul do rio mas sim num dos dormitórios da cintura norte da capital, ou nos arredores de outra cidade por não terem conseguido uma casa acessível no interior do perímetro urbano

Um outro método

Dir-se-á que este não é o quotidiano de todas as mulheres portuguesas. Pois não; há melhor, com rotinas diárias mais suportáveis, mais humanizadas. E também há pior. Quanto ao que há de melhor, digamos mesmo que de muito melhor, basta olhar uma das muitas reportagens que a rubrica “Caras”, da SIC, nos dá a ver. Aquilo é um outro mundo, outra gente, decerto que tudo gente fina porque, como ensina a fórmula corrente, essa é outra coisa. Poder-se-á dizer que as mulheres que habitam os minimundos visitados pela “Caras” são um punhadinho estatisticamente irrelevante, componentes de uma espécie de folclore restrito. Há que considerar, porém, que a mancha demográfica da gente fina portuguesa, das mulheres desse universo, é bem maior que o sugerido pelas tais reportagens, pois muitas são as que não frequentam os eventos com cobertura mediática, e contudo existem e vivem muito confortavelmente, quer «graças-a-deus», como é costume dizer-se, quer graças a qualquer outra forma de intervenção menos divina. E, perante essa realidade, é talvez a altura de recorrermos a um outro método para entendermos a vida e o mundo: de nos lembrarmos que isto da existência de classes no interior das sociedades não é coisa só para homens. Que a generalidade das mulheres que se levanta às cinco da madrugada e vive as primeiras horas do dia de transporte em transporte pertence a uma determinada classe social, e que a generalidade das mulheres que, se quiser, irá levantar-se perto das cinco da tarde, pertence e uma outra classe. È claro que a breve reportagem da TV sobre o quotidiano das primeiras não falou de classes, dessa palavra que inevitavelmente lembra o marxismo, o que até seria perigosamente audacioso. Mas a gente olha e percebe. E, percebendo, mais dificilmente esquece.


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