O boicote

Henrique Custódio
Duzentas mil pessoas na rua em protesto contra um Governo é avassalador, seja em Washington ou Tegucigalpa, em Paris ou Cochabamba.
Se essas 200 mil pessoas forem essencialmente trabalhadores e a manifestação se realizar em Lisboa - num País com 10 milhões de habitantes, dos quais cinco milhões e meio são população activa e meio milhão estão desempregados -, então o caso é sério e ninguém, com dois dedos de testa e elementar bom senso, contesta ou discorda que está ali o trabalho nacional em peso e a indignação do País ao rubro.
É essencialmente este facto que explica a inacreditável subalternização aplicada ao assunto por todos os órgãos de comunicação social, o que diz bastante sobre a sua famosa independência e o suficiente sobre os donos que neles mandam.
Nos diários ditos «de referência», até parece que houve combinação: todos dedicaram o mesmo espaço à manifestação (uma página interior), todos referiram o mesmo número de manifestantes – 200 mil -, citaram a polícia como fonte «quase» desse número – as autoridades estimaram 180 mil manifestantes, caso inédito já que, invariavelmente, as forças policiais costumam cortar pela metade estas avaliações – e afirmaram ter-se tratado «da maior manifestação nos últimos 20 anos».
Apesar desta importância confessa, o tema que hegemonizou as edições do dia foi o famigerado «Tratado de Lisboa» - que reuniu, perto da manifestação, os 27 chefes de Estado e de Governo da União para aprovarem, à sorrelfa, um substituto da rejeitadíssima Constituição Europeia -, e nos dias seguintes nem mais uma palavra houve sobre o assunto.
O semanário Sol foi ao ponto de titular «Maior ma­ni­fes­tação dos úl­timos 20 anos» a que, entretanto, dedicou um texto de 10 linhas ao fundo da página 68 e debaixo de uma fotografia manhosa a fingir de ilustração, enquanto o seu congénere Ex­presso – numa sintonia tocante, deve ser por isso que se esgatanham a considerar-se, ambos, «semanários de referência» - nem título pôs numa fotografia, em plano apertado, na página 6 e sobre uma legenda de quatro linhas que até terminava com um gracejo: «”o pri­meiro-mi­nistro tem de nos ouvir”, dizem. Nem que seja na tv».
Só que, apenas por ironia, o jornalista podia contar com as televisões para o primeiro-ministro ver a manifestação: a começar pelo canal público - a RTP tutelada pelo Governo - e prosseguindo na SIC e na TVI, todos se esmeraram a enterrar o assunto num apontamento perdido lá para o meio dos telejornais da noite, transformando-o em insignificante fait di­vers enquanto saturavam o País com directos e indirectos intermináveis sobre o entremez europeu no Pavilhão Atlântico.
É evidente que não há aqui, propriamente, uma conspiração informativa contra a CGTP-IN e a luta dos trabalhadores. O que temos é outra coisa, menos bombástica mas bastante mais grave: é que os actuais poderosos continuam tão satisfeitos com o trabalho de Sócrates, que tratam de o proteger silenciando as lutas e os protestos na comunicação social.
Insistem na ilusão, patrões e Governo, de que as lutas silenciadas deixam de existir - esquecendo que as lutas crescem sempre, imparáveis, ao ritmo da devastação social produzida pelas más políticas.
Ora 200 mil manifestantes é já um aviso muito, muito sério. Será bom que não o ignorem...


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