Com o «Che» enquanto jovem
A informação de que a RTP1 iria transmitir o filme «Os Diários de Che Guevara» quase justificou alguma perplexidade: por que inesperada magia a Radiotelevisão Portuguesa dava um remoto sinal de se ter tornado um poucochinho, mesmo só um poucochinho, guevarista? É certo que o filme, baseado nos diários que Che escreveu durante uma aventurosa viagem empreendida quando jovem através da América Latina, não tem implicações políticas óbvias nem mesmo um tácito «discurso» politizado. Que pelos seus méritos estéticos e outros se impõe como um excelente trabalho cinematográfico. Que Che Guevara, talvez porque morreu cedo e assassinado em circunstâncias miseráveis, talvez também por se ter tornado bandeira de um culto muitas vezes mais pela utopia que pelo projecto, não tem sido objecto da campanha de detracção odiosa e sistemática que tomou Fidel Castro como alvo. Apesar de tudo isso, é claro que o Che é uma referência da Esquerda, da luta por uma sociedade justa, do internacionalismo, coisas que caiem muito mal no prato do banquete capitalista e neoliberal que anda por aí a mandar no mundo. Às vezes, porventura para lhe diminuir a efectiva dimensão, chamam-lhe «mito» como se a sua acção não tivesse sido desde mundo real, mas a verdade é que o foi, tanto e de tal modo que esteve não apenas em Cuba mas também no Congo e na Bolívia. De qualquer modo, olhado o filme não ficam dúvidas de que os méritos como obra de cinema e a carga de humanidade que lhe dá sentido bastam para justificar a transmissão. No canal principal da Radiotelevisão Portuguesa, sim senhores. Afinal, é saudável que pelo menos de vez em quando alguma coisa na operadora estatal de televisão nos recorde que os tempos de censura pura e dura já acabaram há uns anos. Ainda que nem sempre isso se torne evidente.
O contacto
De facto, no filme de Walter Salles (com produção executiva de Robert Redford) há muito pouca política, nem sequer a há de forma directa. O que de mais próximo dela ali se vê é o episódio do encontro de Ernesto e Alberto, os dois viajantes, com um casal de chilenos que conta a sua história: espoliados de uns palmos de terreno seu por manobras de um especulador, perseguidos pela polícia por serem comunistas, caminham em direcção a uma mina onde o homem espera conseguir trabalho porque ali as condições de trabalho são tão más que «até aceitam comunistas». Para lá deste momento, o mais que o filme mostra são os paupérrimos lugares onde são tratados doentes, alguns toscos centros de acção solidária geridos por religiosas (nem sempre incondicionalmente solidárias, como é ilustrado pela religiosa que só fornece comida a quem comparece à missa) e, sobretudo, a face do povo reduzido à miséria sob diversas formas. É este contacto que leva Ernesto Che Guevara, no momento em que a viagem termina e se despede de Alberto, a formular uma observação muito sintética, única no género ao longo de todo o filme, que contudo iluminará a sua opção de vida dali em diante: «-Tanta miséria!». E nestas duas palavras se contém a mais importante lição de «Os Diários de Che Guevara»: é o contacto directo com as gentes, com o povo, que ensina o que é importante também na área da aprendizagem política. O resto virá por acréscimo a quem quiser não só olhar mas também ver, também entender, e depois disso recusar comprar a sua cómoda tranquilidade individual pelo preço da automistificação, da segregação dos seus próprios álibis que dão cobertura à indiferença, mascarada ou não, e, num outro grau, à traição. Porque, já se vê, voltar costas sob um tal alinhavado pretexto é traição, mesmo quando dissimulada sob flores mais ou menos retóricas. E isto permite-nos compreender que «Os Diários de Che Guevara» é um filme que exige, para que o «leiamos» em toda a sua extensão, termos presente um dado que não está lá, no filme, mas que esteve na vida: que Ernesto Che Guevara, depois que a viagem da Argentina à Venezuela lhe proporcionou, se recusou à traição que poderia consubstanciar-se, depois do regresso a Buenos Aires, por uma interessante carreira médica condimentada por algum «pensamento de esquerda». O que vira durante aqueles meses, o que o filme mostrou e talvez mais ainda o que o filme não mostrou e porventura os diários nem tenham registado, pois nem sempre a mão escreve o que os olhos vêem, mostraram-lhe um outro caminho a que o Che não se recusou. Aí começou o que alguns designam por «mito», outros caminho heróico, uns e outros talvez esquecidos de que o momento se situa, muitas vezes, no lugar onde a honradez de um homem se encontra com a infâmia de um mundo iníquo.
O contacto
De facto, no filme de Walter Salles (com produção executiva de Robert Redford) há muito pouca política, nem sequer a há de forma directa. O que de mais próximo dela ali se vê é o episódio do encontro de Ernesto e Alberto, os dois viajantes, com um casal de chilenos que conta a sua história: espoliados de uns palmos de terreno seu por manobras de um especulador, perseguidos pela polícia por serem comunistas, caminham em direcção a uma mina onde o homem espera conseguir trabalho porque ali as condições de trabalho são tão más que «até aceitam comunistas». Para lá deste momento, o mais que o filme mostra são os paupérrimos lugares onde são tratados doentes, alguns toscos centros de acção solidária geridos por religiosas (nem sempre incondicionalmente solidárias, como é ilustrado pela religiosa que só fornece comida a quem comparece à missa) e, sobretudo, a face do povo reduzido à miséria sob diversas formas. É este contacto que leva Ernesto Che Guevara, no momento em que a viagem termina e se despede de Alberto, a formular uma observação muito sintética, única no género ao longo de todo o filme, que contudo iluminará a sua opção de vida dali em diante: «-Tanta miséria!». E nestas duas palavras se contém a mais importante lição de «Os Diários de Che Guevara»: é o contacto directo com as gentes, com o povo, que ensina o que é importante também na área da aprendizagem política. O resto virá por acréscimo a quem quiser não só olhar mas também ver, também entender, e depois disso recusar comprar a sua cómoda tranquilidade individual pelo preço da automistificação, da segregação dos seus próprios álibis que dão cobertura à indiferença, mascarada ou não, e, num outro grau, à traição. Porque, já se vê, voltar costas sob um tal alinhavado pretexto é traição, mesmo quando dissimulada sob flores mais ou menos retóricas. E isto permite-nos compreender que «Os Diários de Che Guevara» é um filme que exige, para que o «leiamos» em toda a sua extensão, termos presente um dado que não está lá, no filme, mas que esteve na vida: que Ernesto Che Guevara, depois que a viagem da Argentina à Venezuela lhe proporcionou, se recusou à traição que poderia consubstanciar-se, depois do regresso a Buenos Aires, por uma interessante carreira médica condimentada por algum «pensamento de esquerda». O que vira durante aqueles meses, o que o filme mostrou e talvez mais ainda o que o filme não mostrou e porventura os diários nem tenham registado, pois nem sempre a mão escreve o que os olhos vêem, mostraram-lhe um outro caminho a que o Che não se recusou. Aí começou o que alguns designam por «mito», outros caminho heróico, uns e outros talvez esquecidos de que o momento se situa, muitas vezes, no lugar onde a honradez de um homem se encontra com a infâmia de um mundo iníquo.