O regresso do Grande Inquisidor

Jorge Messias
Rompeu-se, na última semana, o espesso silêncio que pesou sobre o Vaticano enquanto o povo libanês era dizimado pelo imperialismo. Pelas piores razões. Aproveitando uma visita ao seu país natal, Ratzinger deixou Bento XVI no bengaleiro e regressou à sua melhor forma de Grande Inquisidor. Esqueceu as baladas ecuménicas, as liberdades religiosas, o seu proclamado respeito pelos direitos humanos, a tal Nova Evangelização que a igreja promete mas já não tem capacidade para concretizar, e resvalou para o plano das ofensas grosseiras ao Islão infiel. Depois, Ratzinger regressou ao Vaticano, deu o dito por não dito e lançou-se aos trabalhos de casa: despediu da Secretaria de Estado o cardeal Solano, afastou o «clã polaco» e o porta-voz oficial da Cúria, Navarro-Valls, e entregou os principais centros de decisão aos seus homens de confiança, trazidos da equipa da Congregação da Defesa da Fé, o tenebroso ex-Tribunal do Santo Ofício. Não se venha agora dizer que Ratzinger cedeu à tentação de passar ao ataque quando o não devia fazer ou que teve uma passageira tontura de intelectual. Ratzinger é um frio calculista, com abundantes provas dadas no passado.
Em tudo isto há matéria que deveria pôr a reflectir aqueles que ainda admitem a existência de uma Nova Igreja nascida do ConcílioVaticano II. A igreja oficial hierarquizada, dogmática, estatal, nunca mudou nem mudará.

O papel do Vaticano

Feitas as contas, não foi sem dor que Ratzinger reconheceu que cem mil católicos alemães se afastam, anualmente, das igrejas alemãs. Índices que, no fundo, pouco pesam no governo da igreja católica. As contrapartidas oferecidas pelos mercados de valores e pela expansão do poder eclesiástico compensam a Cúria e são irresistivelmente apetecíveis.
Muitos observadores têm vindo a reconhecer que a intervenção política e militar dos EUA no Próximo Oriente se saldou por um estrondoso fracasso. A nível militar, as guerras do petróleo não foram suficientes para esmagarem a resistência armada ou para submeterem os povos da região. A nível económico, os gordos lucros obtidos pelas empresas privadas não se traduziram em investimento reprodutivo. A nível político e de mobilização da opinião pública, americanos e ingleses vão de fracasso em fracasso: a ONU e a UE estão desacreditadas, a NATO começa a vacilar e as instituições muçulmanas tradicionais recusam lançar-se em guerras civis e religiosas que apenas serviriam os interesses do invasor.
De grande nau, a globalização imperialista pode vir a transformar-se numa grande tormenta. Veja-se com interesse o que se está a passar com a opinião pública americana onde a popularidade de Bush entrou em queda livre: Bush mentiu sistematicamente (armas iraquianas de destruição maciça, ligação de Hussein à Al-Qaeda, leis antiterroristas ditatoriais, negação da prática de torturas e voos secretos da CIA e do Pentágono, etc.); falseou e escondeu dados essenciais das investigações que conduziriam às verdadeiras causas terroristas dos ataques às Torres de Nova Iorque; e o seu aventureirismo criminoso provocou o sacrifício de multidões de inocentes, a morte de milhares de soldados norte-americanos e o retorno de muitos outros milhares de estropiados, cegos, amputados, paralíticos, queimados, sem perspectivas de vida. Georges Bush perdeu a confiança popular.
A questão é que, com Bush ou sem ele, mesmo sem o mito da Al-Qaeda, o meganegócio do monopólio do petróleo (extracção, refinação, condução por pipe-lines, comercialização, financiamento) deve prosseguir, custe o que custar. Ele é a nova alma do capitalismo. Os políticos podem passar mas os projectos são para cumprir.
Assim se entende melhor esta fuga para a frente do papa Bento Ratzinger. A divisão dos povos muçulmanos é etapa obrigatória do projecto. Se recusarem lançar-se uns contra os outros, será necessário dar-lhes uma ajuda, agitando o mar morto da guerra religiosa. Ratzinger deu agora esse importante passo. Não voltará atrás. Para lá dos destinos insondáveis do capitalismo mundial, o Vaticano tem gigantescos investimentos financeiros a salvaguardar.
Foi esta a questão de fundo que se jogou sobre a mesa. Nos conflitos do petróleo, do negócio e do poder, o Vaticano jamais recuará uma polegada. Outros aspectos citados são acessórios, tais como os pedidos de perdão exigidos a um papa que se afirma infalível nas questões da fé ou a prática evidente das técnicas de pânico moral que caracterizam o espírito de cruzada e da noção do ascendente da religião cristã sobre as outras religiões. O papa promove a imagem virtual do crente que vive acossado por terroristas e pagãos. Sabe que o católico apavorado é dócil e obediente ao clero.


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