Nova Orleães continua em ruínas
Um ano depois da passagem do Katrina pela cidade de Nova Orleães, centenas de milhares de norte-americanos continuam à espera da reconstrução das suas casas, primeiro passo, dizem, para recuperarem pedaços da vida que o furacão levou.
O governo dos EUA esforça-se por vender promessas e oculta as ruínas, mas a realidade demonstra que além das grandes empresas de construção, contam-se pelos dedos os que receberam fundos da administração Bush.
A assinalar o primeiro aniversário da catástrofe, as organizações de solidariedade com os sobreviventes do Katrina deslocaram-se à cidade, no passado dia 29 de Agosto, para lembrar os que não sobreviveram e exigirem medidas que respondam ao drama das famílias afectadas. Monica Moorehead, activista do movimento, descreveu ao Avante! o cenário que encontrou e explicou os motivos do protesto popular.
«Entre 600 mil e um milhão de cidadãos estão deslocados»
A!: Porque razão estiveste em Nova Orleães no primeiro aniversário da passagem do furacão Katrina?
Moorehead: Viemos de vários pontos do país não só para deixar patente que não nos esquecemos da tragédia e continuamos solidários com os sobreviventes do Katrina, mas também para voltar a exigir do governo ajuda para as populações e medidas que permitam integrá-las no processo de reconstrução de Nova Orleães e da região do Golfo do México.
O meu objectivo foi, para além de protestar, falar com as famílias, tentar perceber quais os principais problemas que enfrentam e se no caso seu caso em concreto já se iniciou algum tipo de reconstrução. A informação, as fotos e os vídeos que recolhi são materiais que conto distribuir pelo máximo de pessoas, se possível divulgar não apenas no território norte-americano, mas pelo mundo fora.
Uma das coisas que descobrimos foi que apesar do governo ter canalizado 9,7 mil milhões de dólares com o objectivo de colmatar a destruição do Katrina, a esmagadora maioria dos fundos encontram-se previamente destinados a grandes empresas de construção e manutenção sem sequer terem decorrido concursos para adjudicação de empreitadas.
Algumas destas companhias contrataram trabalhadores imigrantes, aproximadamente 100 mil, aos quais foram dadas as tarefas mais duras, o trabalho mais pesado e perigoso, recebendo remunerações muito baixas. Somente uns poucos tostões chegaram às mãos dos residentes pobres da área citadina, precisamente os que foram identificados como os mais necessitados.
O Katrina atingiu de forma brutal uma área equivalente a mais do dobro do tamanho de Portugal continental. Quantas pessoas se estima que foram afectadas pelo furacão?
Se considerarmos o impacto de ambos os furacões, podemos dizer que no total estes forçaram o êxodo de cerca de dois milhões e meio de pessoas, incluindo os que viviam na costa do Golfo ou perto dela. Mudou radicalmente a vida de milhares de famílias do Mississipi até ao Texas. Qualquer coisa entre 600 mil e um milhão de cidadãos foram obrigados a deslocar-se e permanecem nesta situação. 250 mil crianças foram transferidas das respectivas escolas. Ainda hoje, centenas de milhares de pessoas estão dispersas pelo território norte-americano, muitas das quais nas cidades vizinhas de Atlanta e Houston, isto apesar de conservarem a vontade de regressar a Nova Orleães.
Cenário de destruição
E aqueles que conseguiram regressar, em que condições estão a viver?
O que pudemos observar, por exemplo, na zona baixa de Ninth Ward [bairro habitacional nos arredores do centro de Nova Orleães], foram blocos atrás de blocos completamente destruídos, e esta é precisamente uma das zonas onde vivia parte da população mais pobre.
Na maior parte da área da cidade, vimos apenas algumas casas com sinais de estarem ocupadas, de terem retomado a vida, nas quais os escombros haviam sido removidos, cujas paredes, estruturas e telhados antes esventradas começavam a ser reparados e em cujos quintais fora colocado um contentor que evidencia a presença da FEMA [agência federal norte-americana responsável pela preparação e resposta a catástrofes naturais. Equivalente à protecção civil em Portugal]. Os que regressaram às suas residências receberam pouca ou nenhuma ajuda por parte dos diferentes órgãos da administração governamental para reconstruírem o respectivo património perdido.
De todo o modo, salvo muito escassas excepções, o cenário deixa patente que quase nada mudou um ano passado sobre a catástrofe. A única diferença é que logo após a passagem do Katrina cerca de 80 por cento da cidade de Nova Orleães estava submersa, mas entretanto o nível das águas começou a baixar.
Se passarmos pelas ruas que ficam situadas junto ao dique de sustentação que cedeu há um ano - o qual é suposto ser reconstruído e melhorado - percebemos que os edifícios então existentes pura e simplesmente desapareceram. O abandono é total. A vegetação cresce descontroladamente cobrindo as «cicatrizes» do furacão, entre pilares de ferro e cimento que resistiram ao impacto e pedaços da rede de canalização donde ainda sai água a céu aberto.
Mesmo para aqueles que por iniciativa própria decidiram reconstruir as suas casas, é praticamente impossível viver um quotidiano normal e com um mínimo de conforto. Em muitos bairros não existe fornecimento de energia eléctrica, esgotos ou outras estruturas sanitárias e de serviços básicos. Das 117 escolas que existiam em 2005, apenas 57 se preparam para voltar a abrir as portas. Com os serviços de saúde passa-se o mesmo. Antes havia 22 hospitais, actualmente somente metade se encontra em funcionamento.
Como decorreu a acção de protesto promovida pelos movimentos de solidariedade?
Um milhar de pessoas veio de Atlanta e Houston em autocarros. Outras deslocaram-se por meios próprios provenientes de cerca de uma dúzia de estados e cidades. Juntos marcharam durante cinco quilómetros desde o Ninth Ward até à Avenida do Congo, local onde foram colocadas listas com os nomes das vítimas da inundação. Os participantes pediam «justiça para os sobreviventes do Katrina», exigiam que fosse respeitado o direito de regressarem às suas casas e apelavam à total reconstrução da costa do Golfo do México.
George Bush visitou Nova Orleães nesse mesmo dia numa acção meramente propagandística. Trouxe consigo tamanho aparato policial, um número tão grande de soldados e veículos militares que a baixa do Ninth Ward mais parecia um território ocupado. Aos que queriam juntar-se ao protesto, a partir de dado momento, foi vedada a passagem para a zona. Aconteceu comigo. Felizmente, eu e uma ex-trabalhadora da industria automóvel, Dianne Mathiowetz, viajámos até Nova Orleães com um dirigente sindical da ILWU (Sindicato Nacional dos Estivadores e Trabalhadores dos Armazéns Portuários, na sigla inglesa), Clarence Thomas, cuja esposa, Delores Thomas, conhecia muito bem a cidade e levou-nos até ao ponto da concentração. «Talvez consigamos escapar sem levarmos um tiro», lembro-me de ela ter dito a dada altura.
À parte a minha experiência pessoal na iniciativa, o que importa salientar é que um ano depois torna-se por demais evidente a natureza do capitalismo norte-americano. A passagem do Katrina deixou a nu que o sistema é incapaz de assegurar as necessidades mais elementares das pessoas, neste caso com particular incidência nas camadas mais desfavorecidas da população de Nova Orleães, sobretudo os de origem afro-americana.
Viemos para a manifestação com uma mensagem clara: Os milhões de dólares que a administração Bush está a gastar nas guerras de ocupação do Iraque e na agressiva política externa no Médio Oriente deviam ser canalizados para a reconstrução de Nova Orleães e de toda a costa do Golfo. Não é por falta de dinheiro que ainda nos encontramos neste estado, é por falta de vontade política e desprezo pelas pessoas que viviam na região.
Moorehead: Viemos de vários pontos do país não só para deixar patente que não nos esquecemos da tragédia e continuamos solidários com os sobreviventes do Katrina, mas também para voltar a exigir do governo ajuda para as populações e medidas que permitam integrá-las no processo de reconstrução de Nova Orleães e da região do Golfo do México.
O meu objectivo foi, para além de protestar, falar com as famílias, tentar perceber quais os principais problemas que enfrentam e se no caso seu caso em concreto já se iniciou algum tipo de reconstrução. A informação, as fotos e os vídeos que recolhi são materiais que conto distribuir pelo máximo de pessoas, se possível divulgar não apenas no território norte-americano, mas pelo mundo fora.
Uma das coisas que descobrimos foi que apesar do governo ter canalizado 9,7 mil milhões de dólares com o objectivo de colmatar a destruição do Katrina, a esmagadora maioria dos fundos encontram-se previamente destinados a grandes empresas de construção e manutenção sem sequer terem decorrido concursos para adjudicação de empreitadas.
Algumas destas companhias contrataram trabalhadores imigrantes, aproximadamente 100 mil, aos quais foram dadas as tarefas mais duras, o trabalho mais pesado e perigoso, recebendo remunerações muito baixas. Somente uns poucos tostões chegaram às mãos dos residentes pobres da área citadina, precisamente os que foram identificados como os mais necessitados.
O Katrina atingiu de forma brutal uma área equivalente a mais do dobro do tamanho de Portugal continental. Quantas pessoas se estima que foram afectadas pelo furacão?
Se considerarmos o impacto de ambos os furacões, podemos dizer que no total estes forçaram o êxodo de cerca de dois milhões e meio de pessoas, incluindo os que viviam na costa do Golfo ou perto dela. Mudou radicalmente a vida de milhares de famílias do Mississipi até ao Texas. Qualquer coisa entre 600 mil e um milhão de cidadãos foram obrigados a deslocar-se e permanecem nesta situação. 250 mil crianças foram transferidas das respectivas escolas. Ainda hoje, centenas de milhares de pessoas estão dispersas pelo território norte-americano, muitas das quais nas cidades vizinhas de Atlanta e Houston, isto apesar de conservarem a vontade de regressar a Nova Orleães.
Cenário de destruição
E aqueles que conseguiram regressar, em que condições estão a viver?
O que pudemos observar, por exemplo, na zona baixa de Ninth Ward [bairro habitacional nos arredores do centro de Nova Orleães], foram blocos atrás de blocos completamente destruídos, e esta é precisamente uma das zonas onde vivia parte da população mais pobre.
Na maior parte da área da cidade, vimos apenas algumas casas com sinais de estarem ocupadas, de terem retomado a vida, nas quais os escombros haviam sido removidos, cujas paredes, estruturas e telhados antes esventradas começavam a ser reparados e em cujos quintais fora colocado um contentor que evidencia a presença da FEMA [agência federal norte-americana responsável pela preparação e resposta a catástrofes naturais. Equivalente à protecção civil em Portugal]. Os que regressaram às suas residências receberam pouca ou nenhuma ajuda por parte dos diferentes órgãos da administração governamental para reconstruírem o respectivo património perdido.
De todo o modo, salvo muito escassas excepções, o cenário deixa patente que quase nada mudou um ano passado sobre a catástrofe. A única diferença é que logo após a passagem do Katrina cerca de 80 por cento da cidade de Nova Orleães estava submersa, mas entretanto o nível das águas começou a baixar.
Se passarmos pelas ruas que ficam situadas junto ao dique de sustentação que cedeu há um ano - o qual é suposto ser reconstruído e melhorado - percebemos que os edifícios então existentes pura e simplesmente desapareceram. O abandono é total. A vegetação cresce descontroladamente cobrindo as «cicatrizes» do furacão, entre pilares de ferro e cimento que resistiram ao impacto e pedaços da rede de canalização donde ainda sai água a céu aberto.
Mesmo para aqueles que por iniciativa própria decidiram reconstruir as suas casas, é praticamente impossível viver um quotidiano normal e com um mínimo de conforto. Em muitos bairros não existe fornecimento de energia eléctrica, esgotos ou outras estruturas sanitárias e de serviços básicos. Das 117 escolas que existiam em 2005, apenas 57 se preparam para voltar a abrir as portas. Com os serviços de saúde passa-se o mesmo. Antes havia 22 hospitais, actualmente somente metade se encontra em funcionamento.
Como decorreu a acção de protesto promovida pelos movimentos de solidariedade?
Um milhar de pessoas veio de Atlanta e Houston em autocarros. Outras deslocaram-se por meios próprios provenientes de cerca de uma dúzia de estados e cidades. Juntos marcharam durante cinco quilómetros desde o Ninth Ward até à Avenida do Congo, local onde foram colocadas listas com os nomes das vítimas da inundação. Os participantes pediam «justiça para os sobreviventes do Katrina», exigiam que fosse respeitado o direito de regressarem às suas casas e apelavam à total reconstrução da costa do Golfo do México.
George Bush visitou Nova Orleães nesse mesmo dia numa acção meramente propagandística. Trouxe consigo tamanho aparato policial, um número tão grande de soldados e veículos militares que a baixa do Ninth Ward mais parecia um território ocupado. Aos que queriam juntar-se ao protesto, a partir de dado momento, foi vedada a passagem para a zona. Aconteceu comigo. Felizmente, eu e uma ex-trabalhadora da industria automóvel, Dianne Mathiowetz, viajámos até Nova Orleães com um dirigente sindical da ILWU (Sindicato Nacional dos Estivadores e Trabalhadores dos Armazéns Portuários, na sigla inglesa), Clarence Thomas, cuja esposa, Delores Thomas, conhecia muito bem a cidade e levou-nos até ao ponto da concentração. «Talvez consigamos escapar sem levarmos um tiro», lembro-me de ela ter dito a dada altura.
À parte a minha experiência pessoal na iniciativa, o que importa salientar é que um ano depois torna-se por demais evidente a natureza do capitalismo norte-americano. A passagem do Katrina deixou a nu que o sistema é incapaz de assegurar as necessidades mais elementares das pessoas, neste caso com particular incidência nas camadas mais desfavorecidas da população de Nova Orleães, sobretudo os de origem afro-americana.
Viemos para a manifestação com uma mensagem clara: Os milhões de dólares que a administração Bush está a gastar nas guerras de ocupação do Iraque e na agressiva política externa no Médio Oriente deviam ser canalizados para a reconstrução de Nova Orleães e de toda a costa do Golfo. Não é por falta de dinheiro que ainda nos encontramos neste estado, é por falta de vontade política e desprezo pelas pessoas que viviam na região.