Os empatas
«Não acredito! Tanto trabalho para nada.» A minha amiga Berta era a imagem do desconsolo e não se cansava de repetir incoerências, como aquela de «chega uma pessoa a casa estafada de trabalhar e é isto», esquecida de que está reformada e nem sequer tem 65 anos, imagine-se, e que o trabalho com que compõe a reforma é na verdade uma terapia ocupacional, bem agradável de resto, como esse de vender salgadinhos e bolinhos para os cafés da vizinhança, que faz com que a sua cozinha tenha sempre o perfume das coisas boas que aconchegam o estômago e confortam a alma.
Foi aliás fornecida de tais vitualhas que Berta me entrou porta dentro, deviam ser aí umas oito e meia, aparamentada a preceito, e se instalou em frente à televisão, antecipando gulosa o prato forte da noite. Incapaz de perceber a minha falta de entusiasmo - «que coisa, menina, isso são lá modos de receber as visitas» -, Berta armou a mesa de campismo, distribuiu guardanapos, copos e pratos, exigiu uma travessa para o petisco e reclamou azeitonas, e quando considerou ter tudo a preceito instalou o rotundo traseiro na minha cadeira preferida, aconchegou o cachecol e impôs-me silêncio.
Ia começar o debate.
Ao intervalo, nem os pastéis de bacalhau lhe sabiam bem. «E fui eu tirar a bandeira da naftalina para isto», suspirava. Desconfio que Berta ainda depositava alguma esperança na segunda parte, mas já tinha entrado definitivamente na fase de ver para crer.
Uma hora depois, de queixo caído, a minha amiga exigia explicações.
De nada valeu dizer-lhe que aquilo era o modelo americano, que seria de esperar que Cavaco - tão avesso a expressar opiniões nesta fase do campeonato - tivesse imposto condições que o poupassem ao confronto, que o verdadeiro debate de ideias exige não só ideias como vontade de as submeter ao contraditório, que as regras negociadas nos bastidores impediam que os candidatos se interpelassem directamente, etc., etc., etc.
Berta ouviu e não ficou convencida. «Varinha mágica? Força de desbloqueio? Pacto de confiança? Cooperação estratégica? Visão humanística? Consenso? Mas o que é isto, algum concurso de frases feitas? Uma conversa de surdos? Então estes senhores estão no governo, no parlamento durante anos e anos e agora que querem ir para Belém não têm contas a prestar, não têm projectos a apresentar, não têm sequer uma crítica a fazer um ao outro e estão de acordo em quase tudo?» Berta estava inconsolável. «Isto não foi um debate, nem sequer uma cavaqueira, foi um interlúdio... só faltava a praia com a palmeira para a gente se deixar dormir.»
Berta saiu sem sequer tirar a mesa, mas já da escada ainda me gritou: «Sabes o que isto foi? Um empata tolos, foi o que foi.»
A contas com a arrumação da sala verifiquei que a minha amiga tinha esquecido o cachecol e a bandeira nacional com que pretendera testemunhar ao debate o seu apreço pela causa pública. Dobrei-os devagar, com todo o carinho, e deixei-os ali, na cadeira predilecta, à espera de melhores dias. «Candidatos há muitos, sua palerma», disse baixinho à ausência de Berta, prometendo convidá-la para outros debates que aí estão à nossa volta, com o único candidato que nestes dias dá sentido ao renovar da esperança.
Foi aliás fornecida de tais vitualhas que Berta me entrou porta dentro, deviam ser aí umas oito e meia, aparamentada a preceito, e se instalou em frente à televisão, antecipando gulosa o prato forte da noite. Incapaz de perceber a minha falta de entusiasmo - «que coisa, menina, isso são lá modos de receber as visitas» -, Berta armou a mesa de campismo, distribuiu guardanapos, copos e pratos, exigiu uma travessa para o petisco e reclamou azeitonas, e quando considerou ter tudo a preceito instalou o rotundo traseiro na minha cadeira preferida, aconchegou o cachecol e impôs-me silêncio.
Ia começar o debate.
Ao intervalo, nem os pastéis de bacalhau lhe sabiam bem. «E fui eu tirar a bandeira da naftalina para isto», suspirava. Desconfio que Berta ainda depositava alguma esperança na segunda parte, mas já tinha entrado definitivamente na fase de ver para crer.
Uma hora depois, de queixo caído, a minha amiga exigia explicações.
De nada valeu dizer-lhe que aquilo era o modelo americano, que seria de esperar que Cavaco - tão avesso a expressar opiniões nesta fase do campeonato - tivesse imposto condições que o poupassem ao confronto, que o verdadeiro debate de ideias exige não só ideias como vontade de as submeter ao contraditório, que as regras negociadas nos bastidores impediam que os candidatos se interpelassem directamente, etc., etc., etc.
Berta ouviu e não ficou convencida. «Varinha mágica? Força de desbloqueio? Pacto de confiança? Cooperação estratégica? Visão humanística? Consenso? Mas o que é isto, algum concurso de frases feitas? Uma conversa de surdos? Então estes senhores estão no governo, no parlamento durante anos e anos e agora que querem ir para Belém não têm contas a prestar, não têm projectos a apresentar, não têm sequer uma crítica a fazer um ao outro e estão de acordo em quase tudo?» Berta estava inconsolável. «Isto não foi um debate, nem sequer uma cavaqueira, foi um interlúdio... só faltava a praia com a palmeira para a gente se deixar dormir.»
Berta saiu sem sequer tirar a mesa, mas já da escada ainda me gritou: «Sabes o que isto foi? Um empata tolos, foi o que foi.»
A contas com a arrumação da sala verifiquei que a minha amiga tinha esquecido o cachecol e a bandeira nacional com que pretendera testemunhar ao debate o seu apreço pela causa pública. Dobrei-os devagar, com todo o carinho, e deixei-os ali, na cadeira predilecta, à espera de melhores dias. «Candidatos há muitos, sua palerma», disse baixinho à ausência de Berta, prometendo convidá-la para outros debates que aí estão à nossa volta, com o único candidato que nestes dias dá sentido ao renovar da esperança.