Jerónimo de Sousa sobre Álvaro Cunhal

Um obreiro de causas e projectos libertadores

Em duas singelas páginas o meu camarada Álvaro Cunhal expressou aquilo que considerou como a sua última vontade: ser-lhe-ia muito grato, para além de não haver pronunciamento de discursos, que no funeral estivessem presentes os seus camaradas dos mais responsáveis aos mais modestos e desconhecidos junto dos quais lutou antes e depois do 25 de Abril, até aos últimos dias da sua vida, os familiares a quem muito amava, amigos sem partido, homens e mulheres e jovens que se habituou a estimar e a respeitar e outros que quisessem estar presentes com respeito pelo que como comunista, foi toda a sua vida, com virtudes e defeitos, méritos e deméritos como todo o ser humano.
Quiseram os comunistas, os trabalhadores, os jovens, os democratas, os patriotas, o povo português, não só corresponder ao seu desejo como ultrapassá-lo pela grandeza participando num acto de homenagem incomparável na sua história.
A própria forma como decidiu do destino dos seus restos mortais revela o seu carácter de recusa do mito ou culto da personalidade. Não ficaremos com as suas cinzas. Guardaremos a sua imagem e o seu exemplo no coração da nossa memória, acolhendo as suas ideias e a sua obra como um legado intrínseco ao nosso projecto, à nossa luta, ao nosso Partido, à democracia, como instrumentos de trabalho e de análise ligados á vida e ao tempo que vivemos.
A sua morte física provoca-nos um profundo sentimento de dor e perda.
Perdemos um grande homem, um obreiro de causas e projecto libertadores.
É certo que o tempo de vida de uma pessoa é sempre um tempo curto no processo histórico e na evolução da sociedade humana. Também o foi a vida de Álvaro Cunhal. Mas ele teve o privilégio de viver tempos fascinantes e dramáticos carregados de acontecimentos onde não se limitou a observar e a interpretar mas antes a ser um protagonista na luta pela liberdade do seu povo e pela democracia do seu País, sem abdicar da sua visão e dimensão internacionalista.
Recusou sempre, mesmo nos momentos mais difíceis e nas derrotas mais duras, o fatalismo e o determinismo do fim da história.
No quadro do grande colectivo que desde sempre e para toda a vida abraçou, que a sua inteligência, coragem política, ideológica, moral e física ajudou a erguer, o meu camarada Álvaro Cunhal deu uma contribuição de alcance histórico à luta do povo português no derrube da ditadura fascista e o seu nome ficará para sempre ligado à Revolução Portuguesa do 25 de Abril.
A sua força resultava de convicções inabaláveis. Incapazes de o matarem fisicamente os servidores repressivos do fascismo tentaram vencê-lo pela destruição psíquica e intelectual, isolando-o do mundo, da família e dos seus camaradas durante anos seguidos na prisão! Mas ele não só resistiu como voltou sempre ao combate.
A sua determinação revolucionária, a firmeza na defesa dos princípios, a dureza de tantos combates não deixaram muitas vezes que se revelasse a sua dimensão humanista para com os mais fracos, os mais pobres e explorados e particularmente com as crianças para quem o seu afecto tocante, surpreendia na aparente contradição com a sua tenacidade e determinação.
Um dia durante a visita ao nosso País dum Secretário Geral do Partido Comunista da América Latina exilado por força da implantação de uma ditadura no seu país, um encontro com o então Primeiro Ministro Mário Soares ali no Salão Nobre da Assembleia, prolongou-se excessivamente impedindo um convívio com crianças e jovens que aguardavam aqui um pouco mais acima, na Calçada da Estrela. Nas conversações finais, Álvaro Cunhal depois da saudação fraterna ao camarada e ao seu Partido e ao seu povo, disse-lhe que um dirigente revolucionário que troca mais meia hora institucional por um encontro fraterno com crianças e jovens que o esperavam substimava a dimensão humanista de um dirigente revolucionário.
A sua criatividade e obra artística revelavam a grandeza da sua alma manifestada tantas vezes num livro, num desenho feito na prisão, num intervalo duma reunião comprovativo também da frase que um dia pronunciou da inexistência de zonas brancas da sua vida.
Se não dava tréguas aos adversários no combate político e ideológico tinha sempre por eles o respeito devido. Nunca teve sequer um sentimento de ódio ou ajuste de contas para com aqueles que inclusive o brutalizaram e torturavam, o ofenderam na sua dignidade.
A marca da superior dimensão política, ideológica, intelectual, humana do camarada Álvaro Cunhal ficou impressivamente gravada neste Partido que é o nosso, neste colectivo partidário firme nos seus ideais e nos seus princípios; neste colectivo partidário fraterno e solidário, unido num imenso abraço de camaradagem e amizade.

Alguns procurando datar a sua obra e as suas ideais tão só até ao tempo que nos deixou, substimam uma das suas lições e ensinamentos mais importantes da sua concepção comunista. Afirmava Álvaro Cunhal que a chave do segredo da longevidade e do futuro do nosso Partido e do seu projecto, para além do mérito e da valiosa contribuição de tal ou tal militante, de tal ou tal dirigente, residirá sempre e fundamentalmente na capacidade colectiva, na unidade e coesão, no generoso empenhamento e capacidade de nos ligarmos aos trabalhadores e ao povo, viver os seus problemas e aspirações, agir e lutar pela sua resolução e realização, partir sempre da nossa luta nacional para desenvolver a nossa solidariedade e luta internacional.
Quem esteve ou quem viu ontem aquela incontável manifestação de homenagem ao camarada Álvaro Cunhal sentiu a nossa dor, o nosso sentimento de perda, mas também um sentimento de confiança.
O que de melhor tem o ser humano transbordou à escala duma imensa multidão que reconhece valores. Coerência e verticalidade que não desiste de acreditar num País e num mundo melhor mais justo e democrático. Que tal como a vida, a luta continua!

(Intervenção de Jerónimo de Sousa, no dia 16 de Junho, sobre o voto de pesar por Álvaro Cunhal aprovado pelo Parlamento)



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