Comentário

Farsa em três actos

Ilda Figueiredo

Primeiro acto.
A farsa começou em 2002, com a formação daquilo a que chamaram «Convenção europeia», tentando associar a expressão «convenção» aos momentos fundadores das convenções francesa e americana. Só que, de semelhante, apenas tinha o nome. Nem a sua composição, nem o seu modo de funcionamento obedeceram a princípios democráticos legitimadores de qualquer constituição. Afirmavam que nessa dita convenção europeia estavam representados os parlamentos nacionais. Mas como é que se pode considerar que a Assembleia da República estava representada, se apenas havia dois deputados efectivos – um do PS e outro do PSD – e dois suplentes também dos mesmos partidos, ignorando todas as outras forças políticas representadas na Assembleia da República? Igualmente, o seu modo de funcionamento não garantiu um debate profundo e pluralista nos Estados-membros, com os países e povos que diziam representar, nem, tão pouco, incidiu sobre a totalidade do documento que o Conselho acabou por assinar em Roma. Tratou-se, pois, de uma farsa. Como diz o Prof. Paulo Pitta e Cunha , «uma constituição é, em rigor, a lei fundamental de um Estado. Ora, a União Europeia não é um Estado. É uma associação de Estados com características especiais, em que se combinam, em doses variadas, poderes transferidos para órgãos centrais (supranacionalidade) e poderes correspondentes à autonomia soberana dos Estados. Não se justifica, assim, a forma de constituição, devendo a União continuar a ser regulada por um ou mais tratados internacionais celebrados entre Estados soberanos, e não por uma pseudo-constituição, não dimanada de um poder constituinte – poder que teria de ser radicado num (inexistente) povo europeu.»

Segundo acto.
Nos termos do actual Tratado de Nice que regula a vida da União, qualquer alteração ou novo projecto de Tratado, precisa de ser ratificado por todos os Estados membros. Basta que um Estado não o ratifique para que esse novo projecto seja anulado. A vitória do «Não» no referendo francês já era suficiente para consumar a rejeição do projecto da dita constituição europeia. Mas neste momento há uma dupla rejeição. Pelo que não tem sentido continuar a desvalorizar a enorme importância da dupla vitória do NÃO - em França e na Holanda - ao projecto de Tratado que estabelece uma constituição para a Europa. Com esta rejeição de dois dos seis países fundadores da CEE, signatários do longínquo Tratado de Roma, tudo volta ao princípio.
Mesmo sabendo que pelo caminho ficaram os sonhos de Berlusconi, que, ao promover a assinatura da dita constituição europeia, em Roma, a 29 de Outubro de 2004, durante a Presidência italiana, pensava ficar associado a um novo momento fundador, o Tratado de Roma II, nada pode justificar a continuação do processo de ratificação. É uma farsa utilizar o n.º 4 do artigo IV-443.º, que afirma «Se, decorrido um prazo de dois anos a contar da data de assinatura do Tratado que altera o presente Tratado, quatro quintos dos Estados-membros o tiverem ratificado e um ou mais Estados-membros tiverem deparado com dificuldades em proceder a essa ratificação, o Conselho Europeu analisará a questão», para justificar a continuação do processo.
Senão, vejamos: no artigo IV-447.º da dita constituição europeia, já rejeitada por dois países, no seu n.º 2, afirma-se: «O presente Tratado entra em vigor no dia 1 de Novembro de 2006, se tiverem sido depositados todos os instrumentos de ratificação ou, não sendo o caso, no primeiro dia do mês seguinte ao do depósito do instrumento de ratificação do Estado signatário que proceder a esta formalidade em último lugar». Neste momento, já se sabe que há dois Estados que não podem entregar os instrumentos de ratificação, pelo que a dita constituição europeia não pode entrar em vigor. No próximo Conselho Europeu de 16 e 17 de Junho, a única decisão jurídico-política correcta é a do cancelamento definitivo do processo de ratificação da dita constituição europeia.

Terceiro acto.
Indiferentes ao debate intenso que se vive, neste momento, na União Europeia, na Assembleia da República, PS, PSD e CDS, ou seja, os partidos que recusaram, em 1992, a realização de um referendo sobre o Tratado da União Europeia, que aprovaram em 1997 uma disposição constitucional inviabilizadora de um referendo sobre o Tratado de Amesterdão e que, em 2004, congeminaram uma pergunta referendária manifestamente inconstitucional e motivo de escárnio para a Assembleia da República, acabam de aprovar um projecto de revisão constitucional para um referendo que já não tem sentido. É uma farsa aprovar uma revisão constitucional apenas para um referendo a este projecto, já moribundo, da dita constituição europeia. A menos que o seu objectivo seja evitar que os portugueses se possam pronunciar em referendo sobre a sua vinculação ao processo de integração europeia. Tudo parece apontar, pois, para um referendo sem sentido, talvez como forma de evitar um futuro referendo necessário, que culmine um debate profundo sobre as diferentes opções em matéria europeia, tendo por base uma outra eventual nova proposta de tratado.
Espera-se que a farsa não continue num quarto acto, com a concretização de um pseudo-referendo sobre uma pseudo-constituição europeia no dia das eleições autárquicas.


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