Fórum dos Serviços Públicos rejeita Tratado da UE

A ameaça da «cereja»

Domingos Mealha
No fórum internacional «Serviços Públicos – Motor de uma Sociedade Desenvolvida e Democrática», a chamada Constituição Europeia foi apontada como «a cereja no bolo» da política que visa entregar aos interesses privados tudo o que pode gerar lucros, seja na justiça ou na saúde, na energia ou na captação e distribuição de água, na educação ou nos transportes, nas telecomunicações ou na comunicação social, nos serviços postais ou na investigação científica.
«O tratado de integração europeia, dito “Constituição Europeia”, perfila-se pelo seu conteúdo e objectivos, como mais um perigoso passo para o aprofundamento da ofensiva contra os serviços públicos e os direitos dos utentes e dos trabalhadores e a coesão social, merecendo rejeição por essas razões», afirma-se na resolução aprovada dia 18, no fórum promovido pela plataforma «Iniciativa pelos Serviços Públicos».
Como noticiámos na semana passada, este movimento, lançado em 2003, reúne actualmente mais de uma centena de associações de utentes, comissões de trabalhadores e organizações sindicais. No auditório do Ipimar reuniram-se, para participar no fórum, três centenas de representantes daquelas estruturas e alguns convidados, entre os quais estiveram dirigentes sindicais de França, Reino Unido, Espanha (Galiza) e Grécia.
Ao longo do dia, vários oradores referiram os efeitos perniciosos das políticas da UE para os serviços públicos. O economista e ex-eurodeputado do PCP, Sérgio Ribeiro, chamou a atenção para o relatório da Comissão Europeia sobre esta matéria e denunciou a visão que se expressa na mudança de designação: os serviços públicos são tratados por «serviços de interesse geral», abrindo caminho para que possam perder características essenciais, como a universalidade, desresponsabilizando o Estado de os assegurar e admitindo que passem para empresas privadas.
Fermim Paz, da Confederação Intersindical Galega, diria a propósito, quase no final do painel da manhã, que o conceito de «serviços de interesse geral» é usado «para atacar os serviços públicos e esquecer as conquistas sociais dos últimos 200 anos».
Rui Namorado Rosa, investigador, defendeu que a distribuição de poderes, prevista no Tratado da UE, tem por objectivo favorecer o processo global de privatização de serviços públicos, teorizado pela Comissão em sintonia com a Organização Mundial do Comércio e o acordo global sobre Comércio e Serviços.
O «processo de Bolonha», que define as políticas neo-liberais da UE para o sector da Educação, foi criticado por Fernando Gonçalves, presidente da Associação Académica de Coimbra.
Michel Patard, dirigente ferroviário da CGT, criticou o abandono do investimento público, que prevaleceu na terceira parte do Tratado. Recordou ainda que as modificações estruturais no caminho-de-ferro público (combatidas pelos trabalhadores da SNCF, que realizaram duas greves e uma manifestação desde Janeiro) surgiram a partir de imposições da UE, designadamente no «segundo pacote ferroviário». «E tememos que o terceiro pacote, que está para breve, seja pior que este», disse Patard.
Pelas políticas definidas, a UE «parece querer os serviços públicos fora da concorrência, entregues apenas a duas ou três empresas privadas europeias», acusou o dirigente sindical francês, que se congratulou com a notícia de que o Reino Unido «encara a possibilidade de renacionalizar a rede ferroviária». Michel Patard deixou, a propósito, um conselho: «Bruxelas deveria reflectir muito, antes de destruir organizações que funcionam bem».

Bolkestein? Não!

A directiva da Comissão Europeia sobre o mercado interno de serviços (baptizada com o apelido do antigo comissário Frits Bolkestein, holandês), mereceu o «desacordo» dos participantes no fórum. Na resolução, é considerada como «o mais grave passo no sentido de ampliar as privatizações a mais áreas, serviços e funções».
Em alternativa, reivindica-se «uma avaliação de todo este já longo processo liberalizador e privatizador, que teve como consequência uma grande degradação da qualidade dos serviços, aumento dos preços e redução da sua universalidade».
Ficou afirmada «a determinação de lutar, quer no plano nacional, quer internacional, pela defesa de serviços públicos de qualidade, através de acções articuladas que em cada momento se considerem mais adequadas para suster e inverter as tentativas de retrocesso social e para inverter as políticas privatizadoras, contribuindo desta forma para interiorizar, de forma crescente, na sociedade que os serviços públicos foram, são e serão o “Motor de uma Sociedade Desenvolvida e Democrática”».
A realização de acções congregando trabalhadores e utentes dos serviços públicos é considerada como «factor estratégico» no combate em defesa destes serviços, cuja privatização «conduz a crescentes assimetrias e injustiças sociais e à exclusão de vastos sectores da população, e constitui um retrocesso civilizacional que importa denunciar e combater» – afirma-se na resolução. Bastos exemplos foram citados no fórum.

Conhecimento para dar lucro

A formação avançada (Ensino Superior) e a investigação científica, devido ao facto de a União Europeia ter colocado o ênfase nos objectivos económicos, como se viu na Estratégia de Lisboa, estão a evoluir no sentido da liberalização, da privatização e da concentração. Rui Namorado Rosa afirmou que a prioridade, nestas áreas, vai para grandes projectos com interesse económico, como as redes europeias ou o Galileu. Aparentemente neutros, tais projectos têm inerentes interesses de grandes grupos. Com tal política, saída do «processo de Bolonha», recursos públicos da UE e dos estados-membros são usados a favor dos grupos económicos instalados, em prejuízo do conhecimento como factor de cidadania – acusou.


O modelo britânico

Uma campanha de defesa dos serviços públicos está em curso no Reino Unido, promovida pelo Unison/TUC (Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços Públicos). A responsável por esta campanha é Margie Jaffe, que apresentou no fórum uma detalhada exposição sobre as razões, os objectivos, os meios e alguns resultados da «Positively Public» e de outras acções.
Aquela dirigente começou por recordar que as privatizações na Grã Bretanha têm sido um modelo para muitos países, onde o padrão tem sido muito semelhante. Numa primeira fase, nos anos 80, foi alienada a participação estatal em empresas industriais. Seguiu-se a externalização de serviços e, actualmente, implanta-se a prática de parcerias público-privado. Margie Jaffe considerou estas parcerias como muito graves, porque trabalhadores dos serviços públicos (com direitos reconhecidos no acordo colectivo do sector) passam a estar vinculados a empresas privadas (perdendo em ordenados, férias, pensões...).
O processo privatizador «começa com um número grande de empresas, mas rapidamente se reduz a algumas companhias multinacionais». Para os trabalhadores, além dos cortes no emprego, nos salários e nas condições sociais, as privatizações têm trazido intensificação do trabalho. Na Grã-Bretanha, salientou Margie Jaffe, este processo tem maior impacto as mulheres trabalhadoras, pois têm sido os serviços com mulheres os mais atingidos.
Quando Blair, que prometia melhores serviços públicos, começou a afirmar que o problema estava nos trabalhadores, «acabou a lua-de-mel dos sindicatos com o Partido Trabalhista» e foi definida uma estratégica global do Unison, visando parar as privatizações, sensibilizar a opinião pública, ganhar apoios dentro daquele partido, colocar o tema na agenda política e construir uma aliança ampla para defesa dos serviços públicos.
Da campanha em curso resultou melhor protecção para os trabalhadores, começando pelo poder local, depois passando a abranger a saúde e, recentemente, alargando-se a todos os serviços públicos. Pela primeira vez, um hospital privado foi forçado a garantir aos seus funcionários os mesmos direitos que existem no sector público.
«Mas o processo de mercantilização continua e temos que continuar a lutar», afirmou a sindicalista.

Os verdadeiros prejuízos

Embora os prejuízos da CP tenham servido como argumento para justificar as políticas de direita no sector, fora estas que acabaram por ter consequências nefastas para os trabalhadores e para os utentes do caminho-de-ferro, denunciou Américo Leal.
Ao longo dos anos, o défice da empresa foi aumentando, enquanto um milhão de portugueses perderam o direito ao comboio, com a desactivação de mil quilómetros de linhas férreas, sobretudo no interior do País. Hoje em dia, «até a simples coordenação de horários não é feita» por quem dirige a empresa, acusou aquele dirigente do SNTSF/CGTP-IN, referindo o exemplo das ligações entre Algarve, Lisboa e Porto. Desta forma, «não admira que a CP tenha perdido mais de 50 milhões de passageiros». Recordou que, para tal, os governantes começaram por alegar que o comboio não era rentável, para entregar os percursos à Rodoviária privatizada; mais tarde, o Estado permitiu que também as empresas rodoviárias fossem reduzindo carreiras e percursos, deixando muitas povoações sem qualquer transporte.
Os privados «preferem não correr riscos e deixam os grandes investimentos ao Estado», disse Américo Leal, citando como paradigmático o caso da Fertagus.
Criticou ainda os responsáveis da CP, por não se preocuparem em manter informadas o público afectado pelas obras no Túnel do Rossio, «como se faz noutras obras, onde isso é bem menos necessário». «São só 150 mil pessoas por dia», ironizou.


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