Um encontro em desfile
O encontro saiu à rua e desfilou na avenida que tem o nome de Liberdade. Com uma flor. Ora ao peito, ora em mão erguida, ora no cabelo ou na orelha dos mais jovens.
No festejar em conjunto, o emblema colectivo de uma revolução erguia-se no vermelho dos cravos. Mas o compulsar dos cravos não era eufórico. Parecia antes reflexão e determinação: como os guarda-chuvas que se erguiam de todos os lados, contra um céu sombrio e um vento ameaçador.
Sentia-se que nessa reflexão pesavam inquietações dos dias que correm, do desemprego que alastra, da redução dos rendimentos familiares, do assalto aos direitos do trabalho, da erosão dos direitos sociais, da conjura feita à sombra da «reforma do sistema político», num conjugar que, proclemando «modernidade», desfigura aquela democracia nascida na revolução dos cravos como terreno de liberdade, e que se configurou pela vontade do povo como regime político capaz de dar à democracia as suas necessárias dimensões: uma democracia para assegurar, com a transparência da formação dos órgãos de poder, a aplicação de uma política também ela democrática - isto é, ao serviço do povo. E alargada também às vertentes sociais e económicas, sem as quais a democracia fica mutilada.
Enquanto o desfile avançava estas reflexões cruzavam-se com a alegria dos cravos agitados na marcha, a teimosia dos guarda-chuvas, a resolução dos gritos «25 de Abril sempre», quando uma velhota de sorriso simpático e voz grossa me acotovelou e perguntou se eu queria ver o que tinha no bolso.
Também a sorrir disse-lhe que sim. Tirou do casaco um cravo vermelho, mirrado, seco, escuro. Sempre a andar, no meio do barulho, gritou-me: «Este é o meu cravo do 25 de Abril. Ofereceram-mo na rua, no Largo do Carmo, e eu peguei-o de estaca. Era de boa pega. Já fiz muitos vasos com a estaca deste cravo. Nunca compro cravos na rua. Trago-os sempre dos meus craveiros. Vê este que tenho na mão? Lhe garanto que é daqueles que corriam de mão em mão e os soldados puseram nas espingardas. Tome-o lá e dê-me o seu, que é dos de agora. Eu pego-o de estaca. Garanto-lhe que pega».
Fiquei a falar com ela, de braço dado, até ao Rossio. Com a renovada confiança que me dava a velha senhora e a alegoria do seu cravo de abril que refloresce em cada ano.
Também Abril não é cravo ressequido guardado como memória de uma democracia carregada de promessas.
Olhar apenas as pragas que o têm roído desvaloriza tanto do que o tem defendido e, também, a esperança para o recuperar e replantar, como património que, ele sim, tem sementes de modernidade.
No meio do comício ela disse-me de repente que tinha de ir embora. E recomendou-me: «Não esqueça: pega-se de estaca. Olhe, os raminhos mais tenros, esses que têm folha, são os que deve plantar».
No festejar em conjunto, o emblema colectivo de uma revolução erguia-se no vermelho dos cravos. Mas o compulsar dos cravos não era eufórico. Parecia antes reflexão e determinação: como os guarda-chuvas que se erguiam de todos os lados, contra um céu sombrio e um vento ameaçador.
Sentia-se que nessa reflexão pesavam inquietações dos dias que correm, do desemprego que alastra, da redução dos rendimentos familiares, do assalto aos direitos do trabalho, da erosão dos direitos sociais, da conjura feita à sombra da «reforma do sistema político», num conjugar que, proclemando «modernidade», desfigura aquela democracia nascida na revolução dos cravos como terreno de liberdade, e que se configurou pela vontade do povo como regime político capaz de dar à democracia as suas necessárias dimensões: uma democracia para assegurar, com a transparência da formação dos órgãos de poder, a aplicação de uma política também ela democrática - isto é, ao serviço do povo. E alargada também às vertentes sociais e económicas, sem as quais a democracia fica mutilada.
Enquanto o desfile avançava estas reflexões cruzavam-se com a alegria dos cravos agitados na marcha, a teimosia dos guarda-chuvas, a resolução dos gritos «25 de Abril sempre», quando uma velhota de sorriso simpático e voz grossa me acotovelou e perguntou se eu queria ver o que tinha no bolso.
Também a sorrir disse-lhe que sim. Tirou do casaco um cravo vermelho, mirrado, seco, escuro. Sempre a andar, no meio do barulho, gritou-me: «Este é o meu cravo do 25 de Abril. Ofereceram-mo na rua, no Largo do Carmo, e eu peguei-o de estaca. Era de boa pega. Já fiz muitos vasos com a estaca deste cravo. Nunca compro cravos na rua. Trago-os sempre dos meus craveiros. Vê este que tenho na mão? Lhe garanto que é daqueles que corriam de mão em mão e os soldados puseram nas espingardas. Tome-o lá e dê-me o seu, que é dos de agora. Eu pego-o de estaca. Garanto-lhe que pega».
Fiquei a falar com ela, de braço dado, até ao Rossio. Com a renovada confiança que me dava a velha senhora e a alegoria do seu cravo de abril que refloresce em cada ano.
Também Abril não é cravo ressequido guardado como memória de uma democracia carregada de promessas.
Olhar apenas as pragas que o têm roído desvaloriza tanto do que o tem defendido e, também, a esperança para o recuperar e replantar, como património que, ele sim, tem sementes de modernidade.
No meio do comício ela disse-me de repente que tinha de ir embora. E recomendou-me: «Não esqueça: pega-se de estaca. Olhe, os raminhos mais tenros, esses que têm folha, são os que deve plantar».