Despenalização do aborto

Lei injusta sofre nova investida

Não houve mexidas na legislação sobre o aborto. Nada, porém, ao contrário do que possa parecer, ficou como antes. São vários e profundos os avanços registados.
A maioria PSD-CDS/PP, com o seu autismo, chumbou, faz hoje uma semana, os projecto de despenalização do aborto. Mas não travou o alargar da consciência social perante uma realidade dramática que urge alterar nem conseguiu impedir o novo impulso dado pela iniciativa legislativa do PCP ao movimento dos que se batem pelo fim de uma lei injusta e ignóbil, desadaptada à vida.
Foi, por isso, um debate oportuno e imprescindível o que a bancada comunista impôs no dia 3, recorrendo, para o efeito, ao seu direito de agendamento potestativo. Foi sobretudo uma discussão da qual resultaram ganhos para uma causa que mobiliza os comunistas há mais de 20 anos, justificando a sua colocação no ordem do dia da agenda parlamentar pela quinta vez desde o 25 de Abril.

Iludir o essencial

No centro do debate esteve a despenalização da interrupção voluntária da gravidez – era esse apenas o objecto dos projectos de lei apresentados pelo PCP, PS, «Os Verdes» e BE – e não qualquer outro tema como, por exemplo, a educação sexual e o planeamento familiar.
Para essas águas quis a maioria de direita deslocar a discussão, iludindo assim as verdadeiras questões que estavam em jogo. «É inadmissível que a direita só se lembre destas questões quando se discute a despenalização da IVG», denunciou o líder parlamentar comunista, Bernardino Soares, acusando a maioria PSD-CDS/PP de se refugiar «num conjunto de recomendações para que o Governo faça agora aquilo que ao longo de dois anos e meio não fez».
O projecto de resolução recomendando ao Governo medidas de combate às causas do aborto foi, aliás, o único documento aprovado com os votos favoráveis do PSD e do CDS/PP, que rejeitaram todos os projectos de lei de despenalização do aborto apresentados pelos partidos da oposição.

Hipocrisia da direita

Por isso sobre os partidos de direita recaiu em várias momentos a acusação de terem um comportamento hipócrita. É que a questão que estava colocada no debate, como assinalou Bernardino Soares, não é de consciência. «Essa é a da mulher na sua decisão de recorrer ou não ao aborto; aqui a questão é de opções de lei penal e de saúde pública», esclareceu o presidente da formação comunista, pondo assim em evidência a hipocrisia da direita. Referido, a este propósito, foi o exemplo de quantos, como Durão Barroso, não sendo capazes de condenar uma mulher que pratique o aborto, optam contudo por manter a lei quando confrontados com a sua alteração, sujeitando deste modo as mulheres a «investigações, a incriminações, a julgamentos e a eventuais condenações».
«A história da luta pela despenalização é uma história de hipocrisias, de faz-de-conta, de falsas compaixões», sublinhou, por seu lado, batendo na mesma tecla, a deputada comunista Odete Santos, que criticou os que «fingem que não se sabe que a lei não é cumprida», os que fingem desconhecer «que há mulheres que morrem» e os que, cúmulo da hipocrisia, opondo-se à despenalização, sempre que há um julgamento por aborto, dizem não querer que as mulheres vão para cadeia.
«Só que para as mulheres não se trata de um fingimento», fez no entanto notar Odete Santos, lembrando que a Lei aí está e a ser utilizada, como sucedeu na Maia e em Aveiro. E pondo os pontos nos ii, a deputada do PCP recordou também que «as mulheres são vítimas de perseguição penal, vêem a sua intimidade exposta na praça pública» e «são humilhadas depois de terem sido ofendidas com a provação do aborto inseguro».

Problema de saúde pública

A reter do debate ficou igualmente a ideia de que o confronto não é entre os que são contra e os que são a favor do aborto. É, isso sim, como clarificou Bernardino Soares, «entre os que são a favor de uma lei que despenalize a IVG mas que não obriga ninguém a recorrer a ela e os que querem manter a penalização e com isso obrigar as mulheres ao aborto clandestino».
Outra posição deixada clara pela bancada do PCP foi a de que o problema do aborto não se reduz à questão da despenalização. Em causa está também, conforme foi sublinhado em vários momentos, a resolução do grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino.
A todas estas questões, posicionando-se de forma pouca séria, fugiram os partidos da maioria. Um dos argumentos utilizados, neste caso pelo PSD, pela voz de Leonor Beleza, foi a existência de alegados compromissos eleitorais que impediriam a aceitação de alterações nesta matéria.
Desmontando este embuste, Bernardino Soares pôs em relevo a inexistência de qualquer compromisso do género por parte do PSD quando este se apresentou aos eleitores.
«O que há é um compromisso pós-eleitoral com o CDS», observou Bernardino Soares, que não escondeu a sua indignação pelo facto de as mulheres continuarem sujeitas «à grilheta do julgamento e da prisão só porque o PSD se amarrou ao conservadorismo mais retrógrado da extrema-direita parlamentar».

Quebrar silêncios

Respondendo ao apelo da União de Sindicatos de Lisboa (USL) e de outras organizações várias centenas de pessoas passaram em frente da Assembleia da República para protestar contra a recusa da maioria PSD/CDS-PP em alterar a lei sobre o aborto.
«Estamos aqui para quebrar silêncios e romper com cumplicidades», declarou a representante da USL, Fátima Messias, enquanto decorria no interior do Parlamento a discussão dos projectos de lei de despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) nas primeiras semanas.
Presentes na concentração estavam também representantes do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), da Organização das Mulheres Comunistas (OMC), Inter-Jovem (Juventude da CGTP), Inter-reformados, JCP e ainda outras associações de mulheres.
Vários foram os meios utilizados para veicular a mensagem de repúdio e indignação por uma lei considerada injusta, designadamente cartazes e faixas onde se podia ler, por exemplo: «É uma vergonha o que se passa em Portugal», «Abortar não é crime» e «Fim à penalização das mulheres».

Solidariedade recíproca

A bancada parlamentar do PCP, em declaração de voto, justificou o seu voto favorável aos projectos de resolução do PS e do BE para a convocação de um novo referendo sobre o aborto com a necessidade de «não avolumar fracturas no campo das forças que se pronunciam pela despenalização do aborto».
Apesar de entender que a Assembleia da República tem total legitimidade para legislar sobre a despenalização do aborto sem recurso a novo referendo, como sublinhou no debate o deputado António Filipe, o PCP, perante a «intransigência e arrogância da maioria de direita», quis «afirmar uma solidariedade recíproca» e teve em conta que o PS e o BE votaram favoravelmente o projecto comunista.
«Parece indiscutível que o PS e o BE agiram nesta Assembleia num sentido favorável à aprovação pela AR de uma lei de despenalização do aborto, o que neste ponto converge inteiramente com a prioridade que o PCP sempre concedeu à tese da plena legitimidade da AR para legislar directamente sobre este assunto», lê-se na declaração de voto entregue pelos deputados do PCP.




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