Aviso á navegação

Correia da Fonseca
No passado fim-de-semana, o senhor primeiro-ministro deu-se ao trabalho de viajar até ao esquecido Nordeste para ali inaugurar uma sala de teatro construída no âmbito de um plano que por acaso o actual governo herdou do governo anterior. Por mim, soube da deslocação graças aos bons ofícios do Jornal da Tarde da RTP 1, que se deu ao cuidado de colocar o dr. Durão na notícia de abertura. Surpreendi-me, porque me pareceu que para o corte da fita num novo teatro cujo efectivo funcionamento ainda terá de ser estudado servia muito bem o senhor ministro da Cultura, que há-de servir para alguma coisa. Porém, passei da surpresa inicial ao entendimento do fenómeno quando, no breve momento de reportagem que a RTP me oferecia, deparei com o senhor primeiro-ministro a explicar coisas da política ao povo que porventura o ouvisse. Dizia ele, lá por palavras suas, que a generalidade de «os políticos» anda por aí a propalar pessimismos, mas que o povo, lucidíssimo, percebe lindamente que as coisas não estão assim tão más e que, graças seguramente à acção deste governo, vão ficar ainda melhores. Pelo que tem inteira confiança em quem governa, que por acaso é ele próprio, Durão, ou pelo menos vai passando por isso. Fim da reportagem breve que acabo de resumir quanto ao seu sentido profundo, saliente-se, sem sequer tentar aproximar-se de uma reprodução literal.
Perante aquilo, era possível e talvez adequado considerar que se tratava apenas de mais um punhadinho de inverdades mascaradas de tolices que não são de modo algum exclusiva imagem de marca do senhor primeiro-ministro. Porém, lembrei-me de que a televisão tem vindo recentemente a mostrar-me o dr. Durão, sozinho ou acompanhado de alguns dos seus colaboradores de elevado grau, a calcurriar o País: em Óbidos, em Aveiro, mais ao Norte, sei lá mais onde. Lembrei-me também de ter julgado detectar nos noticiários da RDP um maior empenhamento no destaque às muitas e nunca suficientemente louvadas virtudes desta governação. E concluí, finalmente, que nestas coisas do raciocínio não sou dos mais rápidos, que o senhor primeiro-ministro, e num enfoque mais alargado o partido de que ele é o grande protagonista, decidiram entrar de facto em tom de campanha eleitoral, para tanto mobilizando pelo menos os grandes media que dele dependem. E deixando numa prudente e discreta penumbra o PP e o seu incomparável líder, porque ele há coisas que mais vale não lembrar.

strong>Uma nova fase

É certo que em campanha, e campanha mediática, anda o PSD pelo menos desde que há quase dois anos tomou conta dos cadeirões do Poder. Aliás, nem precisou de se esforçar muito, pois sabe muito bem quem o queira saber que antes mesmo de Março de 2001 já os grandes media, salvo eventuais excepções de que por azar não recordo agora nenhuma, ansiavam visivelmente por um poder mais à direita que o governo Guterres, que já servira o que tinha a servir. Agora, porém, parece haver sinais bastantes para identificarmos uma nova fase nesse processo de prestação de serviços: o governo e o PSD terão passado a uma mais empenhada ofensiva, não só por estarem à vista as eleições para o PE mas também, e talvez principalmente, porque as sondagens indicam claramente que o País está a mergulhar num crescendo de indignação. De onde vir o primeir-ministro arengar que o povo o compreende, alguns políticos é que não. Como, entretanto, o País tem vindo a ser intensamente friccionado com pomada de Antipoliticina Forte (sempre se sugerindo que «os políticos» são os outros, velha receita que já era do doutor Salazar), crêem-se assegurados os efeitos analgésicos e afins. Uns comprimidos de efeitos alucinatórios, ministrados pelos media em geral e pela TV pública em especial, servirão a tentativa de pôr a arraia-miúda a ver na linha do horizonte não só uma mítica Retoma que sirva as empresas entretanto desembaraçadas dos empecilhos que são os direitos dos trabalhadores, mas também algum desafogo para o seu próprio nível de vida.
Como se compreenderá, de tudo isto resulta o dever de uma espécie de aviso à específica navegação que os nossos olhos e ouvidos fazem, dia após dia, diante dos ecrãs da TV: há motivos para crer que está a elevar-se o grau de toxicidade inerente ao consumo de televisão. É natural que assim seja: a direita no governo seria tonta se não disparasse contra a nossa lucidez possível as armas pesadas de que dispõe. Digamos que está no seu papel. E que o nosso está em darmos pela manobra e defendermo-nos dela. Se possível e quanto possível, contra atacando. O que é um outro capítulo da estória, e já não cabe aqui.


Mais artigos de: Argumentos

<em>O Militante</em>

Este número de O Militante - Janeiro/Fevereiro de 2004 - que no mês passado veio a lume e se encontra à venda nos Centros de Trabalho do Partido, propõe aos leitores, de novo, um interessante conjunto de trabalhos cuja leitura constitui uma relevante contribuição para a reflexão e a prática dos comunistas.Como sempre, o...

Pobreza não é categoria social

Mesmo os mais objectivos de entre nós incorrem, frequentemente, no erro de imaginar que pobreza representa um ponto de referência estratificado, um paradigma. É uma valoração que tem a ver, inconscientemente, com um património cultural de base pré-científica e doutrinária. Aceita-se, nesses termos, que toda as lutas...

No posto de trabalho

Aqui estou eu para mais uma reunião com pessoas de diversos pontos da Europa. Outra vez longe do quase usual habitat! Desta vez estou numa outra capital europeia. Já escolhi um lugar à volta da mesa grande onde me sentar e apresto-me, como os outros do pequeno grupo, para o começo do trabalho que nos trouxe aqui. Já só...