Bassorá ontem e hoje

Há mais de 40 anos, visitei o Médio Oriente e a Índia ao serviço do Diário de Lisboa. Nessa longa viagem, cheia de maravilhas e surpresas e também de dramáticas descobertas (quantas misérias e horrores a que homens sujeitam outros homens), estive na legendária cidade de Bassorá (aliás Bas Rah) e ainda me recordo não só dos amigos que comigo partilharam algumas dessas jornadas (entre eles dois futuros oficiais de Abril, o hoje almirante Vitor Crespo e o hoje professor universitário Jorge Correia Jesuíno), como também de imagens da rua e da multidão, do porto do Chatt-El-Arab, da chusma de canoas, cheias de djelabas cinzentas e castanhas, e das gaivotas debicando no mar azul.
Nos «socos» (ou suques) onde tudo se vendia, deparávamos a cada passo com vinhetas das Mil e uma Noites, turbantes, véus, frangalhos de maltrapilhos, as burkas com os seus sinistros buracos, sapateiros batendo pregos nas suas exíguas oficinas, lojas cravadas nas paredes, caldeireiros em círculo, os pacientes ourives com as suas jóias de prata batida, os odores dos perfumes, das especiarias, a muralha sagrada da fabulosa mesquita de Hadhral Iman Ali el Khalifa. Mais adiante, o cheiro a ranço dos guisados de carneiro, a assados e açafrão, e as portas ornadas com estrelas e flores, os altos muros brancos, o Oriente voltado para dentro.
Já então existia o aeroporto de Bassorá (agora em poder dos militares americanos) e o Iraque exportava para o Ocidente, além do petróleo, lãs e tâmaras, peles, madeira. Estava em expansão e já se viam, sobretudo na periferia, casas de estilo europeu mediterrânico entre as construções tipicamente árabes de belos moxerabiés. E pelo meio dos burros, ajoujados ao peso dos odres de água, e dos camelos, apareciam bicicletas e até automóveis de luxo.
Agora caem sobre Bassorá sitiada toneladas e toneladas de bombas e de mísseis, pois os exércitos anglo-americanos, receosos de perder vidas e do efeito negativo que essas baixas produzem na opinião pública, preferem arrasar a cidade, massacrá-la em explosões e incêndios e rendê-la pela fome e pela sede, a avançar para a ocupação com a cavalaria motorizada e a infantaria.
É repugnante e horrível constatar que o governo de Bush, ao serviço das grandes multinacionais e do complexo militar-industrial dos Estados Unidos, tendo apenas duas hipóteses para resolver ou minorar a crise económica estrutural do capitalismo neoliberal (fazer guerras sucessivas para controlar as fontes do petróleo e incentivar a produção de material bélico, assim reactivando a sua economia, ou abandonar a via em que persiste, a do capitalismo selvagem, predador como nenhum outro sistema até hoje o foi), não hesita em escolher o caminho do belicismo, que poderá tornar-se até o dos genocídios. Tudo isto sob a máscara de uma ilimitada hipocrisia, que está provocando a indignação da opinião pública mundial, esse contrapoder, profundamente democrático, que marca este momento histórico e parece já anunciar a possibilidade de uma alternativa global à desumana globalização capitalista.


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