O crime de um general sem honra
No passado dia 11, as estaçõess portuguesas de televisão assinalaram fartamente o segundo aniversário da destruição das grandes torres gémeas de Nova Iorque e evocaram as cerca de três mil vitimas civis que, segundo as estimativas mais frequentes, os atentados provocaram. A solidariedade com a tragédia que feriu a população novaiorquina e, de uma forma mais geral, todo povo norte-americano é, obviamente, a expressão da um sentimento muito positivo, verdadeiramente nobre, e sê-lo-ia ainda mais nitidamente se por vezes não se tivesse confundido com uma espécie de tributo informativo pago por um vassalo ao seu suzerano. De qualquer modo, não há margem para dúvidas: o massacre, indiscriminado de milhares de civis, quer por efeito de «clássicos» actos de guerra quer por práticas designáveis por terrorismo é inaceitável, criminoso, repugnante.
Contudo, é certo que a data de 11 de Setembro já desde 73 estava marcada com o sinal do crime e da tragédia, e que as mesmas estações portuguesas que abundantemente lembraram Nova Iorque pouco ou nada evocaram Santiago do Chile. Pareceram ignorar o inesquecível: que o golpe liderado por Pinochet em Santiago sob encomenda do poder norte-americano fez, também ele, mais de três mil mortos (exactamente 3 198 mortos segundo um posterior balanço de origem norte-americana que, contudo, não contabilizou as torturas e os seus efeitos). Não parece que a cir-cunstância de esses milhares de vítimas não terem sido assassinadas em poucos minutos, quase de um só golpe, como em Nova Iorque, possa legitimar um só instante de indiferença ou sequer uma sensibilização menor, e por isso se lamenta a discrição da TV portuguesa quanto à efeméride. Felizmente, o canal «História» distribuído por cabo, teve um comportamento diferente
e transmitiu mais de um documentário acerca do golpe de Pinochet. Mas o «História» só é visto por uns milhares de entre a minoria que acede à televisão por cabo. Assim se vão reduzindo até à irrelevância as memórias e as consciências.
Um retrato para a História
De entre os documentário acerca do crime de 73 que foram agora transmitidos por cabo, pareceu especialmente notável um telefilme em cuja produção intervieram decisivamente a FR3 e a TV canadiana, isto é, empresas insuspeitas de obsessivas militâncias de esquerda. Para além de uma cobertura minuciosa e por isso mesmo dramática do ataque ao Palácio de La Moneda e das últimas horas do presidente Allende, recortou-se naquele trabalho, com uma nitidez implacável, o contraste entre a coragem e a boa-fé de Salvador Allende, a transbordar para os terrenos da ingenuidade, e a baixeza de Augusto Pinochet, ali claramente surgido como um canalha todo-o-terreno. Sabendo-se, como aliás foi ali recordado até pelo depoimento de Edward Korri, ex-embaixador dos Estados Unidos no Chile, que por ordem de Nixon e Kissinger o golpe foi encomendado aos militares chilenos, fica-se a saber, perante Pinochet, que tipo de escória humana os norte-americanos compram.
E histórico, factual, indiscutível: Pinochet havia sido nomeado apenas dezoito dias antes para a chefia do exército chileno, precisamente para assegurar a fidelidade dos militares ao respeito pela democracia e as suas regras. Aceitou a nomeação. Mais: utilizou a confiança que Allende tinha nele para o levar a adiar um referendo que previsivelmente iria confirmar a legitimidade democrática do governo Allende e o apoio da esmagadora maioria da população. Salvador Allende tinha-o preparado para 11 de Setembro, mas Augusto Pinochet tinha outros planos para essa data: esse seria o dia da sua traição. Isto é, da sua desonra. Porventura para tentar ocultá-la, como se isso fosse possível, quis atrair o presidente para uma armadilha infame, quer dizer, à sua medida de militar perjuro: ofereceu a Allende a possibilidade de sair do Chile num avião. Mas, em instruções via radio que foram captadas e o documentário franco-canadense reproduziu, deu ordem para que o avião fosse derrubado mal descolasse. Só que Allende, homem de outra massa, recusou a capitulação e escolheu morrer presidente e pelas suas próprias mãos.
A tudo isto e ao muito mais que aqui não cabe é forçoso acrescentar o episódio mais recente, verdadeiramente antológico de falta de honra e de vergonha, de cobardia: um general com a farda encharcada pelo sangue de milhares de assassinados com mãos alheias a esconder-se, transido de medo, na tosca barricada de uma demência que as imagens da sua própria propaganda desmentem. Tenho poucas dúvidas: é assim que ele vai ficar na História. Para a vitória dos que o combateram e lição para os que o apoiaram.
Contudo, é certo que a data de 11 de Setembro já desde 73 estava marcada com o sinal do crime e da tragédia, e que as mesmas estações portuguesas que abundantemente lembraram Nova Iorque pouco ou nada evocaram Santiago do Chile. Pareceram ignorar o inesquecível: que o golpe liderado por Pinochet em Santiago sob encomenda do poder norte-americano fez, também ele, mais de três mil mortos (exactamente 3 198 mortos segundo um posterior balanço de origem norte-americana que, contudo, não contabilizou as torturas e os seus efeitos). Não parece que a cir-cunstância de esses milhares de vítimas não terem sido assassinadas em poucos minutos, quase de um só golpe, como em Nova Iorque, possa legitimar um só instante de indiferença ou sequer uma sensibilização menor, e por isso se lamenta a discrição da TV portuguesa quanto à efeméride. Felizmente, o canal «História» distribuído por cabo, teve um comportamento diferente
e transmitiu mais de um documentário acerca do golpe de Pinochet. Mas o «História» só é visto por uns milhares de entre a minoria que acede à televisão por cabo. Assim se vão reduzindo até à irrelevância as memórias e as consciências.
Um retrato para a História
De entre os documentário acerca do crime de 73 que foram agora transmitidos por cabo, pareceu especialmente notável um telefilme em cuja produção intervieram decisivamente a FR3 e a TV canadiana, isto é, empresas insuspeitas de obsessivas militâncias de esquerda. Para além de uma cobertura minuciosa e por isso mesmo dramática do ataque ao Palácio de La Moneda e das últimas horas do presidente Allende, recortou-se naquele trabalho, com uma nitidez implacável, o contraste entre a coragem e a boa-fé de Salvador Allende, a transbordar para os terrenos da ingenuidade, e a baixeza de Augusto Pinochet, ali claramente surgido como um canalha todo-o-terreno. Sabendo-se, como aliás foi ali recordado até pelo depoimento de Edward Korri, ex-embaixador dos Estados Unidos no Chile, que por ordem de Nixon e Kissinger o golpe foi encomendado aos militares chilenos, fica-se a saber, perante Pinochet, que tipo de escória humana os norte-americanos compram.
E histórico, factual, indiscutível: Pinochet havia sido nomeado apenas dezoito dias antes para a chefia do exército chileno, precisamente para assegurar a fidelidade dos militares ao respeito pela democracia e as suas regras. Aceitou a nomeação. Mais: utilizou a confiança que Allende tinha nele para o levar a adiar um referendo que previsivelmente iria confirmar a legitimidade democrática do governo Allende e o apoio da esmagadora maioria da população. Salvador Allende tinha-o preparado para 11 de Setembro, mas Augusto Pinochet tinha outros planos para essa data: esse seria o dia da sua traição. Isto é, da sua desonra. Porventura para tentar ocultá-la, como se isso fosse possível, quis atrair o presidente para uma armadilha infame, quer dizer, à sua medida de militar perjuro: ofereceu a Allende a possibilidade de sair do Chile num avião. Mas, em instruções via radio que foram captadas e o documentário franco-canadense reproduziu, deu ordem para que o avião fosse derrubado mal descolasse. Só que Allende, homem de outra massa, recusou a capitulação e escolheu morrer presidente e pelas suas próprias mãos.
A tudo isto e ao muito mais que aqui não cabe é forçoso acrescentar o episódio mais recente, verdadeiramente antológico de falta de honra e de vergonha, de cobardia: um general com a farda encharcada pelo sangue de milhares de assassinados com mãos alheias a esconder-se, transido de medo, na tosca barricada de uma demência que as imagens da sua própria propaganda desmentem. Tenho poucas dúvidas: é assim que ele vai ficar na História. Para a vitória dos que o combateram e lição para os que o apoiaram.