O regresso da vírgula

Anabela Fino
As vírgulas são uma praga de que não nos conseguimos livrar, seja por infestarem os textos sem rei nem roque quando em excesso, fazendo com que a leitura se transforme numa corrida de obstáculos ou de ataque de soluços, seja por primarem pela ausência, deixando-nos à deriva num oceano de letras e em permanente risco de sermos engolidos pelas vagas alterosas do texto. Também há, claro, as vírgulas rigorosamente aplicadas, o que já vai sendo raro, e as outras – topo de gama –, conhecidas por «cirúrgicas».
Haverá quem se lembre de uma vírgula assaz cirúrgica que ficou famosa por – dizem as más línguas – ter como alegada paternidade Almeida Santos, presidente do PS, que com tal pontuação terá alterado radicalmente o sentido de um texto legislativo. O caso não ficou provado – olha o espanto! –, mas o recurso à vírgula passou a fazer parte das reservas da nação.
Ainda esta semana o porta-voz dos utentes do Centro de Saúde de Valença, Carlos Natal, falou da «vírgula» ao contestar as explicações do Governo para o encerramento nocturno do Serviço de Atendimento Permanente (SAP) local. Segundo o executivo, a média de utentes por noite, em 2009, foi de 1,7 pessoas; de acordo com Natal, terá sido de 17 pessoas. «Alguém se lembrou de meter, deliberadamente, uma vírgula no meio», acusou.
Com vírgula ou sem ela o facto é que Valença está em pé de guerra. Depois de vigílias, cortes de estrada, marchas e muitos protestos Valença começou a encher-se de bandeiras espanholas, uma original forma de dizer que as autoridades da Galiza se preocupam mais com a saúde dos valencianos do que Lisboa. E tanto assim é que o alcaide de Tui já manifestou total disponibilidade para receber os doentes portugueses no Centro de Saúde da cidade (onde nem se paga taxas moderadoras), admitindo reforçar o respectivo pessoal médico e de enfermagem se a afluência de portugueses o justificar. Poderá não ser um caso de vírgulas, mas se restar um pingo de vergonha em S. Bento, é caso para mudar de texto.


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