Os «amigos»
As denúncias, fundamentadas há dias pelo Público sobre os projectos de moradias assinados indevidamente por José Sócrates na câmara da Guarda, nos finais dos anos 80, originaram da parte do primeiro-ministro um desmentido revelador. Após admitir a sua «responsabilidade» na elaboração dos 21 projectos escrutinados pelo jornal – e alegadamente realizados ao arrepio do Estatuto de Exclusividade da AR, que determina aos deputados em exercício «a impossibilidade legal de desempenho de qualquer actividade profissional, pública ou privada» -, Sócrates argumenta que tais projectos «foram elaborados a pedido de amigos e sem que eu tenha auferido qualquer tipo de remuneração», o que, segundo ele, «está portanto em conformidade com as normas legais de exclusividade em vigor». Deixando de lado as contradições destes argumentos - aliás também denunciadas pelo jornal (por exemplo, Sócrates em 2007 declarava que estes projectos eram uma «actividade residual» e agora transforma-os num «favor a amigos») - e ignorando os despiques hermenêuticos que o primeiro-ministro e serviçais atiçam sobre a legislação em causa, esforçando-se por demonstrar que ela permite o que efectivamente proíbe (por exemplo, a invocação da gratuitidade como uma «conformidade com as normas legais» configura uma falácia, pois a norma é taxativa na proibição de qualquer actividade profissional, pública ou privada), o que importa reter e observar é a actuação, ela própria, do primeiro-ministro. Invocar a gratuitidade de 21 projectos de moradias feitos num quadro de «favor a amigos» provoca, de imediato, uma irreprimível estranheza – a de haver alguém a trabalhar tanto nas «horas vagas» (Sócrates era deputado «em exclusividade» e até pedira, nesse período, o pagamento com retroactivos do subsídio dessa exclusividade) e para tantos «amigos» (21 projectos, em cerca de dois anos de «horas vagas», é de facto obra). Acontece que esta invocação de «favor a amigos» introduz uma displicência, nesta empreitada dos 21 projectos, que os factos apurados pelo Público nos arquivos da câmara da Guarda desmentem flagrantemente: ao contrário de um «engenheiro nas horas vagas» que desenhava casas «para amigos», como afirma o próprio, nesse período Sócrates era um projectista de edifícios na Guarda com ligações orgânicas à câmara tão concretas, que esta acabaria por o afastar da direcção de obras nos anos 90, após lhe aplicar duas repreensões por unanimidade, ameaças de sanções legais e severas críticas por incompetências várias nesse métier de projectista. Todavia, o mais revelador do quadro mental em que se move José Sócrates é a facilidade com que ele invoca o «trabalho para amigos» como uma coisa natural, ainda por cima numa actividade técnica conhecida pela voracidade (um projectista a desenhar uma casa grátis parece uma lotaria, projectar 21 à borla configura um milagre bíblico). É um retrato de corpo inteiro e é o próprio José Sócrates que o tira a si próprio: a filosofia deste homem assenta no amiguismo, a sua visão do mundo afunila-se numa teia de favores onde todo o poder se mercadeja. A esta luz, ficam cruamente expostas as embrulhadas de Sócrates nas licenciaturas, nos Freeports, nas nomeações de Varas e Penedos, nas PêTês e TêVêís. E nem uma legião de assessores consegue escondê-lo.