O aeroporto da Ota e os problemas da igreja (1)

Jorge Messias
Aparentemente não existe uma relação entre o problemático projecto do aeroporto Lisboa/Ota e os reais problemas com que se debate a igreja portuguesa. Nada, porém, de menos verdadeiro. Se é certo que o discurso demagógico do actual governo uma vez promete e a seguir diz que não, a sua retórica destina-se, neste caso, o futuro político do país a compromissos difíceis de desfazer. Economicamente, a decisão foi catastrófica. Mesmo antes de existir um projecto provisório, a estimativa dos custos já duplicou. Quanto virá então a custar a empreitada, daqui por doze anos? Pouco importa. A decisão é política e foi tomada no quadro dos alinhamentos de interesses do poder político e do poder religioso. Com ressonâncias no mundo dos negócios.
No plano económico, são evidentes as razões que motivam o interesse da hierarquia da igreja. As futuras instalações da Ota situar-se-ão a escassas dezenas de quilómetros do Santuário de Fátima o qual é anualmente visitado por cerca de 4 milhões de peregrinos (enquanto que, por exemplo, o Santuário de Lourdes, em França, recebe por ano 10 milhões de visitantes). Esta situação de desequilíbrio é desconfortável mas pode, todavia, ser muito melhorada. A cidade e o santuário estão longe do ponto de saturação turística. Pelo contrário, a sua integração no circuito turístico das Grandes Peregrinações tem registado progressos assinaláveis. Sem dúvida que estes factores pesaram na elevação de Fátima a concelho.
Há um projecto da valorização do santuário que vem de longe e desde há mais de vinte anos que as questões do turismo religioso têm sido minuciosamente equacionadas. O anunciado aeroporto permitirá canalizar para Fátima novas multidões de peregrinos seduzidos pelos preços praticados pelas agências de turismo do Vaticano instaladas em toda a Europa. Por outro lado, a igreja católica portuguesa realizará um invejável negócio, não só com a valorização dos estabelecimentos comerciais e hoteleiros do Santuário mas também com as compensações que o Estado lhe irá pagar, a título de indemnizações, pelos prédios rústicos e urbanos a demolir ou pelos terrenos a atravessar pelos acessos às novas infraestruturas. A política de aquisição sistemática dos solos faz parte, desde há dezenas de anos, dos planos de acção a prazo dos gestores eclesiásticos. Numa outra vertente, deve acentuar-se a importância que Fátima já tem e virá a aumentar na próxima reformulação orgânica da igreja portuguesa: trata-se da mais arriscada reforma pastoral jamais tentada no país. Por isso, a sua preparação tem sido extremamente minuciosa e prudente.
Os problemas com que a hierarquia católica portuguesa se debate são, todos eles, graves e de alto grau de complexidade. O fulminante avanço das novas tecnologias e o seu controlo absoluto por parte de elites laicas poderosas desequilibrou totalmente a relação de forças a que a igreja se habituara no antigo regime. Assim sendo, o governo eclesiástico é obrigado, agora, a encontrar respostas adequadas à rápida modernização das suas estruturas; à consolidação do dogma, actualizado por um discurso adaptado às novas condições sociais; ao reforço da histórica unidade de acção entre o Estado e a Igreja, sempre camuflada por uma autonomia aparente, capaz de garantir o amortecimento da revolta popular; à permanente garantia de que as múltiplas intervenções e mudanças de sentido da igreja contarão sempre com o beneplácito do poder económico.
À complexa operação exige-se que não falhe. Porque, contrariamente às teses aparentes do episcopado, o clero bem sabe que as ideologias religiosas começam a ser desnecessárias às minorias que controlam o mundo. Só antes de percorrer a sua fase imperialista o capitalismo não dispunha de uma expressão que funcionasse no espaço ideológico. A religião impunha-se como pilar necessário ao capital. Porém, a partir de agora, os grandes potentados poderão pastorear multidões condicionadas pelo fetiche do lucro, da afirmação social e do individualismo feroz. A igreja tornar-se-á mercadoria «descartável». Perde a sua mais-valia. Vacila como parceira estratégica. Todos estes riscos se inscrevem agora nos horizontes da igreja portuguesa. Assim, a reforma pastoral não pode falhar. É uma presente exigência vital.


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