Marianismos salazarentos

O dia 28 de Junho de 1947 é uma data que pouco ou nada diz ao cidadão comum e que milhares de mulheres ignoram, apesar de assinalar um evento marcante, pela negativa, na história do movimento de emancipação feminina em Portugal. Nesse dia, o coercivo encerramento da sede do CNMP - Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, não foi um mero acto arbitrário do regime fascista português, mas inseriu-se na linha de pensamento e acção de um déspota, que parente pobre do fascismo europeu do seu tempo, se mantinha como filho dilecto da Santa Sé, segundo Marcelo Caetano escreveu nas suas Memórias.
Criado em Março de 1914, o CNMP pugnava por subversivas causas: (...) defender tudo o que diga respeito ao melhoramento das condições materiais e morais da mulher, especialmente a proletária; remuneração equitativa do trabalho, protecção à criança contra o maus tratos e exigência de trabalho superior às suas forças, etc. E, assim sendo, aos olhos do piedoso regime, o CNMP não passava duma organização suspeita, desde o seu laicismo militante em prol da elevação cultural da Mulher, até ao seu empenhamento contra costumes e leis que limitavam a actividade da Mulher e a proibiam de ter direitos políticos iguais aos do Homem.
A ousadia do CNMP era intragável para quem erguera instituições fascistas femininas como, a Mocidade Portuguesa Feminina, a Defesa da Família e a Obra das Mães pela Educação Nacional. A petição do CNMP à Assembleia Nacional para alteração e alargamento da lei eleitoral, e o questionário às associadas (Dez/46), onde se solicitavam dados como: percentagem de analfabetos, na região; número de mulheres que trabalham; suas profissões predominantes e salários médios; creches e escolas infantis e seu funcionamento; condições de assistência à mulher grávida que trabalha e à doméstica, constituíam uma verdadeira afronta. Eram mulheres que não apelavam à oração ou ao trato humílimo mas à luta; mulheres infiltradas pelo jacobinismo; mulheres que não se destacavam como dedicadas catecúmenas e, ousavam assumir prestigiantes iniciativas como a Exposição de Livros Escritos por Mulheres na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa inaugurada a 4 de Janeiro a 12 de Janeiro de 1947. Era uma organização onde enfileiravam desde a fundação destacadas intelectuais como: Carolina Michaelis, Adelaide Cabete (primeira médica portuguesa), Elina Guimarães, Maria Lamas, Manuela Porto e tantas outras mulheres progressistas, em síntese, gente condenada desde a encíclica Syllabus de Pio IX (1864).
Mas, se isto não bastasse para alimentar a leitura vesga do Poder, o mundo do pós guerra animara no CNMP outras actividades consideradas pouco recomendáveis e, entre elas, o seu ostensivo alinhamento com a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, numa época em que os discursos imperialistas de Churchill e Harry Truman apelavam ao desencadeamento da “guerra fria” para travar a ameaça comunista.
Nessa conjuntura, o Estado Corporativo, cônscio do valor patrimonial político e ideológico que Fátima continha, cedo alinhou com o novo espirito de cruzada, mesclando objectivos políticos e religiosos, e denunciando como anti-cristos todos os que não comungassem o seu Marianismo militante e, ao invés, lutassem pela causa da Paz.
Selar a sede do CNMP foi, apenas, um dos muitos processos inquisitórios, na lógica de um regime, teimosamente branqueado pelas historiazinhas que, universitariamente, se contam às novas gerações.


Mais artigos de: Argumentos

O mistério da meia desaparecida

Se eu fosse economista… Mas não sou. O que fazias? É que estava a apetecer-me falar de temas como o fundamentalismo - para mim enquanto cidadão - anti-inflacionista. Às vezes parece-me que o reformar-se antes de tempo já é [, pelo menos objectivamente,] uma medida conducente à solução do «problema» das pensões:...

Pedofilias 2

Fundada em 1781, a Real Casa Pia de então não correspondia à instituição em que depois se tornou. Foi instalada no Castelo de S. Jorge e tinha como finalidade a recolha dos mendigos e órfãos que enchiam as ruas de Lisboa. Deveu-se a sua fundação a Pina Manique, poderoso Intendente das Polícias de D. Maria I....

No regresso de Harry Potter

Não direi que foi a grande notícia do fim-de-semana, a que os telenoticiários divulgaram com maior destaque: há-de ter havido por esse País fora algum crime, alguma desgraça, que terá recebido tratamento de grande manchete audiovisual e reportagem no local com parentes e vizinhos das vítimas. A questão é que já não...