Fátima, sem milagres

Correia da Fonseca
No passado dia 10, Dia de Portugal, o senhor Presidente da República falou ao Pais, a RTP esteve lá, mas tudo indica que a audiência ao discurso presidencial foi de uma exiguidade incompatível com a sue efectiva importância. Logo no dia seguinte, a cidadã Fátima Felgueiras também falou ao País. A receber as suas palavras não esteve apenas a pouco relevante RTP 2, como acontecera com Jorge Sampaio, mas as três estações portuguesas de televisão, em directo a partir do outro lado do Atlântico.

Significa isto que, em matéria de audiências, Fátima, a de Felgueiras e não a da Cova da Iria, esmagou o presidente da República. Não por mérito dela, mas porque a TV que se faz em Portugal e o interesse jornalístico que nela impera é o que é e não o que porventura desejaríamos que fosse. Mas o que mais desagradou a uma mão?cheia de opinadores foi que entre as estações que se decidiram pelo tal directo do Rio estivesse a RTP 1. Neste aspecto, destacou-se o senhor ministro Sarmento, que não resistiu de tentação de transgredir a lei e vir produzir sentenças sobre o conteúdo da informação prestada pela Radiotelevisão Portuguesa. 0 senhor ministro (que alguma iliteracia designa às vezes, é claro que indevidamente, por «o senhor sinistro») deu sinais de ter assistido nessa noite ao programa da RTP 1, pelo menos a partir das 20 horas, e não ter gostado.
Pouca sorte de Fátima Felgueira porque, a julgar pela habitual passividade do senhor ministro, ver as emissões da RTP 1 não é hábito seu. Quanto à intromissão opinativa nos conteúdos da RTP, o mesmo é dizer, quanto a pressões nessa área, só me recordo de um antecedente: quando tornou pública uma sua aparente apetência para trocar o «Acontece» por viagens à volta do mundo em condições nunca depois esclarecidas.

Uma santa ignorância?

Em abono do senhor ministro, saliente-se que a sua pública manifestação de desagrado foi apenas uma entre muitas outras, só que ferida pela incómoda agravante dos deveres impostos pela sua função ministerial, um dos quais será, supõe-se, não infringir a lei de modo excessivamente descarado. Quanto aos restantes desaprovadores surgidos em vários média, com inevitável relevo para o professor Marcelo da TVI, o que mais surpreende é a aparente ignorância do contexto em que que ocorreu a cobertura que a RTP deu à conferência de imprensa de Fátima Felgueiras. Por outras palavras: os austeros comentadores que a reprovaram no costumam ver TV, ignoram de todo o que é hoje a televisão servida ao domicilio pela SIC, pela TVI e, por forçoso arrastamento ou não, pela RTP? Não sabem que as decisões gestionárias de qualquer dessas estações estão confiadas às tabelas das audiências avaliadas dia a dia, se não hora a hora ou minuto a minuto, isto é, aos patacos mais ou menos vultosos que resultam da venda dos nossos olhos aos publicitários?
Em resumo: o senhor ministro, mais os que não são ministros mas podiam muito bem sê-lo porque isto é uma democracia e até porque no ministro Sarmento não se pressentem qualificações especiais para o cargo) não sabem em que País vivem e acordaram agora, estremunhados, ao som da voz de Fátima Felgueiras?
Alguns, mas não o professor Marcelo que nestas matérias não desatina (guarda este pendor para quando opina sobre o PCP) assentaram a sua indignada reprovação no facto de Fátima Felgueiras ser presumível autora de crimes e, para mais, ser uma foragida à Justiça. Quanto a este segundo aspecto e louvando-me no que ouço na TV a distintos juristas, parece?me que a criatura é foragida, sim, a um processo penal mais atentatório de direitos humanos que as regras em vigor durante o fascismo, o que me parece notável. No que se refere aos crimes imputados a Fátima, a de Felgueiras, verifico com espanto que a generalidade dos comentadores presume de facto a sua culpabilidade, em completo desrespeito pela presunção de inocência que a lei impõe. Julgo que esse desrespeito não á crime, mas é um fenómeno curioso e, parece-me, quase sempre indiciador de uma motivação não-consciente, se não oculta: é que se Fátima não é culpada o escândalo da fuga não é tão clamoroso, e se o escândalo não for clamoroso perde o sentido a voracidade de uma opinião pública alimentada a escândalos. De onde menos audiências, menos publicidade, menos patacos. Para os devidos efeitos declaro que não sou admirador, nem sequer simpatizante, de Fátima Felgueiras. Mas confesso ser muito simpatizante de uma outra TV em cuja lógica não estejam acepipes como o da conferência de imprensa do Rio. E de um ministro que não parece acordar de súbito, possesso de inesperados rigores deontológicos, de um permanente sono povoado por sonhos em que o «Acontece» é decapitado juntamente com quaisquer outras tentações de uma TV inteligente e útil, culpada de não conseguir as audências que Fátima Felgueiras, sem milagres, garante.


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