De um país a outro

Correia da Fonseca
No dia 25, a RTP transmitiu da Assembleia da República a sessão solene comemorativa do aniversário de Abril. Transmitiu-a pelo seu segundo canal, como é seu hábito, dir-se-ia que para sugerir discreta mas eficazmente que isso do 25 de Abril é coisa secundária. À tarde, a SIC repetiu o telefilme, produção sua, que reconstitui os principais acontecimentos militares que marcaram o primeiro dia da Revolução: é um trabalho com qualidade que pode contribuir para minorar a espessa camada de ignorâncias que separa as gerações mais jovens do conhecimento de Abril. Nos telenoticiários principais de todas as estações foram incluídas brevíssimas reportagens das comemorações havidas em Lisboa e no Porto. 0 Jornal 2 (de novo o «segundo canal»...) deu à efeméride muito mais tempo que os restantes, com uma longa (e sem dúvida merecida) entrevista a José Niza e a Manuel Alegre. É claro que não passou por lá nenhum comunista, mas compreende-se: o Partido Comunista Português, que hoje não tem o mínimo interesse jornalístico na avaliação de quem decide os conteúdos da tele-informação fornecida ao País, já em 25 de Abril de 74 era um partido que «não existia», de harmonia com um despacho em tempo lavrado por um senhor censor do aparelho repressivo fascista, como já aqui tive ensejo de citar porventura por mais de uma vez. Passaram-se dois dias e, no dia 27, a RTP2, sempre ela, transmitiu às 20 horas, tempo dos telenoticiários e portanto altura óptima para ficar perto do grau zero das audiências, um programa que a RTP produzira em 98. Tenho como certo que, no quadro de tudo quanto acerca de Abril a TV portuguesa transmitiu este ano, este documentário, «Um outro País», foi o que melhor podia ter contribuído para contar o que foi Abril. Porque Abril não foi só um movimento amado de homens fardados que venceram em menos de 24 horas: Abril teve um antes e teve um depois. E é claro que escrever isto não corresponde de modo nenhum a uma menor gratidão pelos que são capitães de Abril qualquer que fosse a sua patente militar naquele dia.
Acontece que ficarmo-nos pelas fardas, pelos chaimites, pelos cravos na ponta das G-3, seria, isso sim, ingratidão ou coisa ainda muito pior para com os «capitães» que sem fardas, nem carros, nem cravos, durante décadas construíram o que viria a ser Abril.

A esperança recolhida

«Um outro País», o tal documentário, não se ocupava do «antes» de Abril.
Não surpreende: falar dos anos que precederam Abril, da luta que sempre disse «não!» ao fascismo, implica reconhecer que afinal os comunistas e o seu partido existiram e isso não está na vocação da RTP.
Mas o documentário falou de pequenos fragmentos do «depois», e embora a única alusão explícita a gente do PCP não fosse simpática, o que também não espanta, houve ali o mérito de povoar Abril com gente sem farda. Eram operários fabris e trabalhadores rurais que jornalistas estrangeiros encontraram quando, atraídos e muitos deles fascinados por esse fenómeno estranhíssimo que era uma revolução de esquerda na Europa dos anos 70, acorreram a Portugal. Dos farrapos de documentários que tinham feito em 74/75 não emergia nada de muito coerente e esclarecedor, mas resultava uma evidência: aquela era gente duramente explorada durante anos e anos que tentava implementar um quadro laboral e social diferente e justo. Era gente que se apercebia, decerto pela primeira vez ao longo de toda à sua existência, de que a vida podia valer a pena. Que o futuro podia ser uma promessa, não um susto.

Porém, o documentário intitulava-se «Um outro País», e não certamente por acaso. É que os jornalistas que em 98 revisitaram Portugal vindos de vários lugares do mundo encontraram de novo uma terra de cujas ruas e locais de trabalho desaparecera a esperança evidente (recolhida, sabemo-lo nós, pelos ainda muitos milhares que sabem que a iniquidade nunca alcança vitórias definitivas, por muito que o suponha, a que a luta paga sempre dividendos, embora muitas vezes bem mais tarde do que esperávamos porque a História não tem pressa, nós é que sim). É que entretanto houvera a contra-revolução legislativa, a tomada do poder pela direita, o regresso dos velhos senhores ou dos seus herdeiros directos. Isto é: é que entretanto Abril fora aprisionado nas grades do poder financeiro e seus mandatários. Mas em «Um outro País» estava fixado, embora fugazmente, o melhor de Abril: a alegria de um povo que se dispunha a trabalhar com redobrada força. Isso não estivera em nenhum outro momento da limitada programação comemorativa de Abril na TV portuguesa. Porque Abril foi, fundamentalmente, isso mesmo: uma explosão de esperança. De que outros abdicaram. Que os comunistas conservam, defendem e justificam.


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