Das flexibilidades

Francisco Silva
Vale a pena voltar ao outro assunto. Sim, vale a pena o esforço. Mesmo nestas semanas em que fomos envolvidos - ainda quando tentámos escapar a um voyeurismo doentio que parecia ter atacado quase todo o mundo - pelo esplendor das explosões que iam rebentando com boa parte do Iraque e do seu povo1. Porque a vida contínua e o entretenimento (entretenimento enquanto desviante da nossa atenção e distractivo do nosso sentido crítico), dizia eu, o entretenimento produzido por tais bombardeamentos maciços de informação guerreira não deverá monopolizar as nossas atenções, que tão necessárias são à nossa intervenção no dia a dia.
E também vale o esforço ir a esse tal outro assunto, não porque tenhamos chegado só agora à conclusão da ineficácia informativa de uma situação como a gerada pela cobertura da guerra no Iraque. Uma ineficácia no sentido de parecer que nunca, como me fazia notar, por estes dias, um colega inglês, na verdade nunca uma tão grande quantidade de «informação» sobre uma guerra levou a uma tão grande ignorância nossa. Contudo, também não é por parecer não valer a pena a nossa atenção a este fluxo de informação que nos chega sobre a guerra. É antes porque a atenção ao assunto a ser agora ruminado não pode mesmo ser descurada.
Então vamos ao tal assunto que vale mesmo a pena. Qual é? É a questão da chamada flexibilização (histórica, diria o autor destas linhas) dos processos de produção - dos processos de produção no seu sentido mais amplo, tanto por incluírem a concepção dos produtos como por os produtos considerados aqui não se limitarem aos manufacturados. Por outro lado, não nos estamos a referir, bem entendido, à flexibilidade das leis do trabalho, se bem que, de entre os defensores da flexibilidade na produção, os mais inteligentes e sabedores têm procurado vislumbrar, encontrar e explicar a ligação entre as duas acepções referidas para o conceito de flexibilidade.
E vale mesmo o esforço tentar entender o nó desta questão mesmo que ele só como verniz apareça nos debates a que se tem assistido por cá. Com efeito, cá, quer quando se discute o novo Código de Trabalho quer a produtividade e competitividade, é quase o deserto de ideias sobre a relação destes dois «aspectos» da flexibilidade. Mas que se há-de fazer? Por cá, obcecados - os que mandam - com a flexibilidade de poder juntar e subtrair unidades «humanas» descartáveis de força de trabalho, à medida do que julgam ser em cada «momento» o que basta para as suas necessidades de proventos e de maximização de lucros.
Porque vale a pena ainda entender bem que a outra flexibilidade, bem estimulada pela introdução das tecnologias de informação - disseminadamente, um pouco por toda a parte e aos mais diversos níveis -, a outra flexibilidade seguiu por outros caminhos. Esta é uma flexibilidade realizável pela possibilidade de adaptação dos processos de «fabrico» a novos produtos, sem aqueles terem de ser transformados de alto a baixo. E, com a vinda da informática, multiplicou-se também a criação de novos produtos. Estes tanto são novos modelos de automóvel como serviços de rede inteligente nas telecomunicações (ex. o pré-pagamento nos telemóveis).
(A tecnologia dos novos processos de fabrico foi então designada por fabrico assistido por computador - em inglês, CAM, Computer Aided Manufacturing. A tecnologia de concepção dos novos produtos por projecto assistido por computador - CAD, Computer Aided Design. O CAD/CAM pressupõe a associação de ambas as partes da produção num mesmo sistema, no limite «em tempo real», a parte da concepção e a parte da «fabricação». Idealmente flexível, o sistema integrado de produção poderá responder na hora apropriada, quase apenas por alterações de software, às alterações de concepção e de «fabrico» de produtos na quantidade pedida.)
Finalmente, e a decorrer da flexibilização dos processos de produção, vale então a pena compreender que os trabalhadores devem deixar de ser vistos - nomeadamente por grande parte do empresariado - como descartáveis do tipo «faz tudo», desde apertar parafusos até servir cafés ao chefe. Antes pelo contrário, o trabalhador dos processos flexíveis deve ter capacidade e saber para actuar em situações complexas e para desembaraçar-se de tarefas muito variáveis - mas variáveis no âmbito de uma plataforma «estável» -, o que exige uma base sólida de conhecimentos. Adaptável às inovações, o trabalhador já não deve ser descartável.
Espero que tenha valido a pena desviar o pensamento por uns instantes da desumana Guerra do Iraque! Isto, para não deixar cair no olvido «flexibilidades» de que também depende o existir ou não de um Futuro para todos.

Texto escrito durante a segunda semana de Abril de 2003.



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