Da doutrina ideal à prática real

Jorge Messias
A quase totalidade das nossas atenções tem estado centrada no que se passa nos países da guerra e do petróleo. Com justa razão. Aí se estão a talhar os caminhos que conduzirão a uma nova organização mundial ou à destruição do mundo, ao universo das esperanças dos pobres ou à satisfação da voraz cupidez dos ricos. Esta imagem também descreve o que se passa entre nós, a nível nacional, mas parece momentaneamente esquecido.Tudo o que vai acontecendo envolve pessoas ou instituições e hipoteca as suas opções futuras. O mundo de hoje prepara o mundo de amanhã. E todos os passos que vamos dando, a custo, participam nos dantescos cenários da luta de classes. Ainda que os protagonistas da acção - que somos nós - possam não estar inteiramente conscientes da projecção histórica dos seus actos. É por isso que se torna cada vez mais necessário comparar cada doutrina com a sua prática.
No Iraque de Sadam, o sistema prometia fazer renascer a grandeza árabe dos tempo dos Califas em moldes actuais de maior justiça social e de mais equilibrada distribuição da riqueza. Sadam Hussein podia tê-lo feito e não o fez. O regime assentava o seu principal suporte no BAAS, de cunho pseudo-socialista mas, na realidade, confundindo socialismo e caridade muçulmana, sociedade classista laica e corporativismo religioso. Em todos os países árabes onde se radica, o BAAS apresenta-se como promotor revolucionário das grandes reformas radicais. O facto, porém, é que todas as suas estruturas partidárias são dominadas - do Egipto à Palestina ou do Líbano ao Iraque - pela pequena burguesia urbana, pelos grandes proprietários rurais e pelos elos de ligação com movimentos confessionais ou com os serviços secretos do aparelho do Estado. Assim se compreende que as mudanças sociais prometidas às populações dos países árabes atinjam rapidamente um ponto de ruptura quando o poder è colocado perante a necessidade de se confrontar com os interesses da nova burguesia e com os privilégios da propriedade feudal. É o caso dos regimes que, na Arábia ou na Ásia Central, têm procurado nacionalizar o petróleo. Quando, no Iraque, o general Kassem avançou nesse sentido, Sadam Hussein, o BAAS e as petrolíferas, assassinaram-no. Nos estados árabes satélites do petróleo, as populações pobres sobrevivem apenas com os subsídios do Estado ; a industrialização marca passo, as clientelas do poder vivem desafogadamente e as altas camadas dirigentes navegam num mundo das " Mil e Uma Noites". Embora, como é evidente, todos se procurem ocultar por detrás de uma causa desinteressada : Salam Hussein e o BAAS falavam em devolver ao mundo árabe o antigo esplendor e em promover o progresso ; os agressores americanos proclamam que, mesmo à bomba, apenas desejam a libertação do povo iraquiano. A ONU nem sequer admite os seus próprios crimes, expressos na forma como bloqueou economicamente o país, definiu zonas de exclusão, matou um milhão de seres humanos pela fome e pela doença e desarmou as forças iraquianas que são no seu país, como noutra qualqer nação independente, factor da soberania. Por seu turno, o Vaticano limitou-se a dissertar sobre a paz e a guerra como se a paz abstracta fosse um catecismo e o homem real o aluno passivo dessa catequese. Perante a avançada do imperialismo capitalista, o movimento religioso deu de si próprio uma imagem lamentável. O Islão desuniu-se e, uma vez mais, olhou para o lado fingindo que não percebia aquilo que se estava a passar com os seus irmãos iraquianos. A mítica ideia da guerra santa fez prova da sua vacuidade. As igrejas norte-americanas moostraram como estão já muito longe da pujança cívica provada nos tempos de Martin Luther King. Na Europa, o gigantesco levantamento popular em defesa da paz construiu-se contra o poder político dos governos e afastou-se de um Vaticano titubeante que não conseguiu ocultar as suas afinidades com os padrões do capitalismo imperialista ocidental. Em Portugal, foi o que se viu. Em nome pessoal, alguns bispos condenaram a agressão norte-americana. Isoladamente, algumas organizações católicas pronunciaram-se a favor da paz. Em bloco, o episcopado afastou-se da luta popular. Os bispos portugueses chegaram até ao desconchavo de declararem que " a Igreja não faz política " ! ... Quando é para todos evidente que é isto mesmo que os bispos fazem !


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