quanto a da famosa biblioteca de Alexandria
Um crime imperdoável
Os EUA permitiram o saque e destruição do Museu de Bagdad. Este atentado contra o património mundial, verdadeiro crime contra a humanidade, não foi acidental.
«Os EUA não cumpriram a promessa de proteger as relíquias de Bagdad»
Os Estados Unidos e Grã-Bretanha nunca ratificaram a convenção internacional, assinada em Haia, em 1954, que regula a preservação do património cultural durante conflitos. O Iraque, pelo contrário, é um dos subscritores da convenção. Esta diferença de atitude, apesar de significativa, não chega no entanto para explicar o sucedido na capital iraquiana.
Poder-se-ia pensar que as forças norte-americanas foram apanhadas desprevenidas, mas também não é esse o caso. No início desta semana, organizações de arqueólogos dos EUA e a própria Unesco (órgão da ONU para a cultura), informaram ter entregue ao governo norte-americano, meses antes da guerra, informações sobre o património histórico e os sítios arqueológicos do Iraque.
«Alertámos para a possibilidade de saques desde o começo», disse o professor McGuire Gibson, da Universidade de Chicago, que integrou um grupo que esteve várias vezes no Pentágono apresentando detalhes sobre os tesouros iraquianos, inclusive o Museu Nacional de Bagdad. «A perda é incomensurável», afirma o professor, lembrando que «o museu de Bagdad é equivalente ao Museu do Cairo». O que se passou na capital iraquiana, segundo Gibson, foi como «ter soldados norte-americanos a 200 metros do Museu do Cairo vendo as pessoas levando embora os tesouros da tumba de Tutancamon ou embalando múmias».
Negócios escuros
Uma notícia divulgada no jornal escocês Sunday Herald, no dia 6 de Abril - ou seja antes do saque ao Museu e à Biblioteca Nacional de Bagdad -, ajuda a perceber os acontecimentos. Um grupo de coleccionadores de antiguidades e de advogados, que se designa por American Council for Cultural Policy (ACCP), encontrou-se com altos responsáveis norte-americanos a quem ofereceu os seus préstimos para «acautelar» as riquezas arqueológicas iraquianas.
Segundo o jornal, este grupo é conhecido por integrar um conjunto de influentes intermediários favoráveis ao abrandamento das restrições iraquianas respeitantes à venda e exportação de antiguidades. O tesoureiro do ACCP, William Pearlstein, chegou mesmo a descrever as leis iraquianas como «retencionistas» e disse apoiar um governo do pós-guerra que facilite a existência de antiguidades espalhadas pelos EUA.
É significativo que, antes da Guerra do Golfo, o ACCP tenha desenvolvido uma campanha para convencer o governo a rever a legislação sobre a propriedade cultural (Cultural Property Implementation Act) de forma a minimizar os esforços dos países estrangeiros que visam impedir a importação de objectos para os EUA, e em particular de antiguidades.
Se se tiver em conta que o acervo do Museu de Bagdad incluía mais de 170 mil peças - algumas únicas, como um vaso de alabastro de Uruk que data de 3500 a.C. ou retábulos com escrita cuneiforme, nunca decifrados -, percebe-se melhor como foi possível a criminosa devastação levada a cabo contra as relíquias da antiga Mesopotâmia, região considerada o berço da civilização, onde surgiram as primeiras cidades, o primeiro alfabeto e o primeiro código jurídico.
«Sabemos que a maioria das peças desapareceu para sempre», disse Patty Gerstenblith, do Instituto Arqueológico da América, que tal como Gibson considera a destruição do museu de Bagdad tão grave quanto a da famosa biblioteca de Alexandria, ocorrida há mais de 2000 anos.
Salvar o que resta
Consternados com o facto de os Estados Unidos não terem cumprido a promessa de proteger as relíquias históricas de Bagdad durante os ataques, os especialistas procuram agora salvar o que resta. O vice-director da Unesco, Mounir Bouchenaki, anunciou segunda-feira que importantes arqueólogos vão reunir-se em Paris para discutir as formas de preservar o património cultural iraquiano e preparar a viagem de uma missão de especialistas ao país.
As esperanças não são muitas pois, segundo Gibson, algumas das peças roubadas estarão já a ser vendidas no mercado de antiguidades de Paris. Trata-se de um chorudo negócio, dado que as mais valiosas podem ser vendidas a coleccionadores por milhões de dólares.
Entre as medidas a tomar para minorar a perda incomensurável, os especialistas encaram a possibilidade de criar uma página na Internet com um catálogo de tudo o que havia no museu de Bagdad. De acordo com Gerstenblith, que lecciona na Universidade DePaul, o prejuízo não se limita ao valor cultural dos objectos, pois eles também têm importância religiosa e científica. «Permitimos a destruição não só de nosso próprio património, mas também do património das futuras gerações».
A justiça dos vencedores
não é um princípio aceitável
O Centro pelos Direitos Constitucionais, uma organização não governamental (ONG) norte-americana, e a associação britânica de Advogados Defensores do Interesse Público admitem a possibilidade de investigar, à luz do direito internacional, os crimes de guerra cometidos pelos EUA e a Grã-Bretanha.
Numa entrevista conjunta, Michael Ratner, presidente da ONG, sublinhou que «não são simplesmente os supostos crimes iraquianos que devem ser investigados, mas também os dos Estados Unidos e os dos seus aliados», pois as «convenções de Genebra não abrangem um só campo».
Na opinião de Ratner, «a justiça dos vencedores não é um princípio aceitável do ponto de vista jurídico», pelo que faz todo o sentido investigar os crimes cometidos pelos atacantes.
Phil Shiners, em nome da associação britânica, anunciou por seu turno a formação de um grupo de cinco juristas internacionais encarregados de determinar os elementos que podem constituir, no contexto da guerra tecnológica moderna, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade e começar a reunir as provas. O resultado do trabalho deste grupo será apresentado a um «tribunal de opinião pública», a quem caberá decidir se deve ou não solicitar ao Tribunal Penal Internacional (que os EUA não reconhecem) que assuma esses casos.
Tropas americanas
incitam ao saque
Não foi necessário muito tempo para os iraquianos perceberem que os norte-americanos apenas protegem as instalações petrolíferas, manifestando a mais profunda indiferença face ao colapso dos serviços básicos para a sobrevivência das populações.
No domingo, junto ao hotel Palestina, em Bagdad, onde se concentra a maioria dos órgãos de comunicação internacionais, ouviram-se palavras de ordem contra a ocupação dos EUA e a denúncia de que pouco ou nada está a ser feito para «restabelecer serviços essenciais como o abastecimento de electricidade e água». A constatação de que «os americanos só estão interessados no petróleo» generaliza-se, mas a realidade é ainda mais grave.
Segundo as agências noticiosas, a multidão que se juntou perto do hotel condenou a anarquia reinante e denunciou a cumplicidade dos norte-americanos com os saques.
Um professor universitário, Shakir Aziz, disse ter visto soldados americanos a encorajar saqueadores a pilharem a Universidade. «Eu vi com meus olhos como as tropas dos Estados Unidos incitavam iraquianos a saquearem e incendiarem a Universidade de Tecnologia», garantiu.
Outros testemunhos dão conta de que o mesmo se passa um pouco por todo o país.
O reitor da Universidade de Basra, Abdul Jabar al-Khalifa, contou aos jornalistas ter sido violentamente afastado quando guardava os restos incendiados do que fora o seu escritório. «Será isto a liberdade do Iraque ou a liberdade dos bandidos?», questionou. Da prestigiada universidade do sul do país não resta quase nada. Os computadores, unidades de ar condicionado e móveis foram roubados, e boa parte do campus foi depois incendiada.
A responsabilidade, segundo o reitor, é dos ingleses. «Eles nada fizeram para deter os saqueadores. Eu considero-os responsáveis», declarou.
Muitos acreditam que as tropas anglo-americanas estão apostadas em destruir o Iraque, e já se afirma que os saqueadores estão a soldo dos invasores. Em Basra, como noutras cidades, os iraquianos organizam-se em brigadas de auto-defesa e não perdem uma oportunidade para afirmar, como fez Ahmed Aziz al-Hadithi enquanto patrulhava o seu bairro de Al Mansura, que «mais dia, menos dia, os iraquianos honestos vão pôr os americanos daqui para fora, não para salvar Saddam Hussein, mas para salvar o Iraque».
Poder-se-ia pensar que as forças norte-americanas foram apanhadas desprevenidas, mas também não é esse o caso. No início desta semana, organizações de arqueólogos dos EUA e a própria Unesco (órgão da ONU para a cultura), informaram ter entregue ao governo norte-americano, meses antes da guerra, informações sobre o património histórico e os sítios arqueológicos do Iraque.
«Alertámos para a possibilidade de saques desde o começo», disse o professor McGuire Gibson, da Universidade de Chicago, que integrou um grupo que esteve várias vezes no Pentágono apresentando detalhes sobre os tesouros iraquianos, inclusive o Museu Nacional de Bagdad. «A perda é incomensurável», afirma o professor, lembrando que «o museu de Bagdad é equivalente ao Museu do Cairo». O que se passou na capital iraquiana, segundo Gibson, foi como «ter soldados norte-americanos a 200 metros do Museu do Cairo vendo as pessoas levando embora os tesouros da tumba de Tutancamon ou embalando múmias».
Negócios escuros
Uma notícia divulgada no jornal escocês Sunday Herald, no dia 6 de Abril - ou seja antes do saque ao Museu e à Biblioteca Nacional de Bagdad -, ajuda a perceber os acontecimentos. Um grupo de coleccionadores de antiguidades e de advogados, que se designa por American Council for Cultural Policy (ACCP), encontrou-se com altos responsáveis norte-americanos a quem ofereceu os seus préstimos para «acautelar» as riquezas arqueológicas iraquianas.
Segundo o jornal, este grupo é conhecido por integrar um conjunto de influentes intermediários favoráveis ao abrandamento das restrições iraquianas respeitantes à venda e exportação de antiguidades. O tesoureiro do ACCP, William Pearlstein, chegou mesmo a descrever as leis iraquianas como «retencionistas» e disse apoiar um governo do pós-guerra que facilite a existência de antiguidades espalhadas pelos EUA.
É significativo que, antes da Guerra do Golfo, o ACCP tenha desenvolvido uma campanha para convencer o governo a rever a legislação sobre a propriedade cultural (Cultural Property Implementation Act) de forma a minimizar os esforços dos países estrangeiros que visam impedir a importação de objectos para os EUA, e em particular de antiguidades.
Se se tiver em conta que o acervo do Museu de Bagdad incluía mais de 170 mil peças - algumas únicas, como um vaso de alabastro de Uruk que data de 3500 a.C. ou retábulos com escrita cuneiforme, nunca decifrados -, percebe-se melhor como foi possível a criminosa devastação levada a cabo contra as relíquias da antiga Mesopotâmia, região considerada o berço da civilização, onde surgiram as primeiras cidades, o primeiro alfabeto e o primeiro código jurídico.
«Sabemos que a maioria das peças desapareceu para sempre», disse Patty Gerstenblith, do Instituto Arqueológico da América, que tal como Gibson considera a destruição do museu de Bagdad tão grave quanto a da famosa biblioteca de Alexandria, ocorrida há mais de 2000 anos.
Salvar o que resta
Consternados com o facto de os Estados Unidos não terem cumprido a promessa de proteger as relíquias históricas de Bagdad durante os ataques, os especialistas procuram agora salvar o que resta. O vice-director da Unesco, Mounir Bouchenaki, anunciou segunda-feira que importantes arqueólogos vão reunir-se em Paris para discutir as formas de preservar o património cultural iraquiano e preparar a viagem de uma missão de especialistas ao país.
As esperanças não são muitas pois, segundo Gibson, algumas das peças roubadas estarão já a ser vendidas no mercado de antiguidades de Paris. Trata-se de um chorudo negócio, dado que as mais valiosas podem ser vendidas a coleccionadores por milhões de dólares.
Entre as medidas a tomar para minorar a perda incomensurável, os especialistas encaram a possibilidade de criar uma página na Internet com um catálogo de tudo o que havia no museu de Bagdad. De acordo com Gerstenblith, que lecciona na Universidade DePaul, o prejuízo não se limita ao valor cultural dos objectos, pois eles também têm importância religiosa e científica. «Permitimos a destruição não só de nosso próprio património, mas também do património das futuras gerações».
A justiça dos vencedores
não é um princípio aceitável
O Centro pelos Direitos Constitucionais, uma organização não governamental (ONG) norte-americana, e a associação britânica de Advogados Defensores do Interesse Público admitem a possibilidade de investigar, à luz do direito internacional, os crimes de guerra cometidos pelos EUA e a Grã-Bretanha.
Numa entrevista conjunta, Michael Ratner, presidente da ONG, sublinhou que «não são simplesmente os supostos crimes iraquianos que devem ser investigados, mas também os dos Estados Unidos e os dos seus aliados», pois as «convenções de Genebra não abrangem um só campo».
Na opinião de Ratner, «a justiça dos vencedores não é um princípio aceitável do ponto de vista jurídico», pelo que faz todo o sentido investigar os crimes cometidos pelos atacantes.
Phil Shiners, em nome da associação britânica, anunciou por seu turno a formação de um grupo de cinco juristas internacionais encarregados de determinar os elementos que podem constituir, no contexto da guerra tecnológica moderna, um crime de guerra ou um crime contra a humanidade e começar a reunir as provas. O resultado do trabalho deste grupo será apresentado a um «tribunal de opinião pública», a quem caberá decidir se deve ou não solicitar ao Tribunal Penal Internacional (que os EUA não reconhecem) que assuma esses casos.
Tropas americanas
incitam ao saque
Não foi necessário muito tempo para os iraquianos perceberem que os norte-americanos apenas protegem as instalações petrolíferas, manifestando a mais profunda indiferença face ao colapso dos serviços básicos para a sobrevivência das populações.
No domingo, junto ao hotel Palestina, em Bagdad, onde se concentra a maioria dos órgãos de comunicação internacionais, ouviram-se palavras de ordem contra a ocupação dos EUA e a denúncia de que pouco ou nada está a ser feito para «restabelecer serviços essenciais como o abastecimento de electricidade e água». A constatação de que «os americanos só estão interessados no petróleo» generaliza-se, mas a realidade é ainda mais grave.
Segundo as agências noticiosas, a multidão que se juntou perto do hotel condenou a anarquia reinante e denunciou a cumplicidade dos norte-americanos com os saques.
Um professor universitário, Shakir Aziz, disse ter visto soldados americanos a encorajar saqueadores a pilharem a Universidade. «Eu vi com meus olhos como as tropas dos Estados Unidos incitavam iraquianos a saquearem e incendiarem a Universidade de Tecnologia», garantiu.
Outros testemunhos dão conta de que o mesmo se passa um pouco por todo o país.
O reitor da Universidade de Basra, Abdul Jabar al-Khalifa, contou aos jornalistas ter sido violentamente afastado quando guardava os restos incendiados do que fora o seu escritório. «Será isto a liberdade do Iraque ou a liberdade dos bandidos?», questionou. Da prestigiada universidade do sul do país não resta quase nada. Os computadores, unidades de ar condicionado e móveis foram roubados, e boa parte do campus foi depois incendiada.
A responsabilidade, segundo o reitor, é dos ingleses. «Eles nada fizeram para deter os saqueadores. Eu considero-os responsáveis», declarou.
Muitos acreditam que as tropas anglo-americanas estão apostadas em destruir o Iraque, e já se afirma que os saqueadores estão a soldo dos invasores. Em Basra, como noutras cidades, os iraquianos organizam-se em brigadas de auto-defesa e não perdem uma oportunidade para afirmar, como fez Ahmed Aziz al-Hadithi enquanto patrulhava o seu bairro de Al Mansura, que «mais dia, menos dia, os iraquianos honestos vão pôr os americanos daqui para fora, não para salvar Saddam Hussein, mas para salvar o Iraque».