O regime iraquiano ruiu e deu lugar ao caos

A lei da selva

Anabela Fino
A tomada do Iraque pelas forças anglo-americanas fica marcada por dois acontecimentos: o hastear da bandeira americana nos locais mais emblemáticos do país, e o caos generalizado que sobreveio à queda do regime iraquiano. As imagens de pilhagem e destruição a que o mundo tem vindo a assistir confirmam a ideia de que o objectivo dos EUA não foi apenas o de derrubar Saddam Hussein mas também o de destruir o Iraque. Cumprido o desígnio, as atenções voltam-se para a Síria.

«As únicas armas químicas, biológicas e nucleares na região estão em Israel»

As forças da coligação anglo-americana tomaram o Iraque à força de bombas e de muito sangue de vítimas inocentes. Os invasores passeiam-se agora pelas ruas das cidades destruídas. Falta a água e a electricidade. Os hospitais, escolas, bibliotecas, museus, bancos, casas, mercados foram reduzidos a escombros. Os vivos abrem valas comuns para enterrar os mortos e procuram sobreviver no caos instalado num país sem lei nem ordem. O poder civil caiu na rua. O novo poder militar assiste sem pestanejar à destruição do país que chegou a ser, a todos os níveis, um dos mais desenvolvidos da região.
Após o estardalhaço feito em torno da descoberta de um armazém com material suspeito, que afinal não passava de insecticida, nunca mais ninguém ouvir falar das armas de destruição maciça que o Iraque alegadamente possuía. Os EUA, que não só possuem como utilizam armas dessas - o exemplo iraquiano aí está mais uma vez para o provar -, não revelam pressa em pôr cobro à lei da selva que reina no Iraque, mas começam já a assestar as suas baterias para o próximo alvo: a Síria.
No início da semana, George W. Bush fez saber que veria com bons olhos a colaboração da Espanha na sua nova cruzada, que «justificou» no domingo acusando a Síria de possuir armas químicas e de acolher iraquianos com a cabeça a prémio no império americano.

Muito ameaça, pouca imaginação

Secundando Bush nas acusações e na imaginação, o secretário de Estado Colin Powell anunciou que a Síria pode vir a ser alvo de sanções económicas e diplomáticas, e Ari Fleischer lembrou que se trata de uma Estado «pária», com lugar cativo na lista de países que apoiam o terrorismo, publicada anualmente pelos EUA.
Sem rodeios diplomáticos, Fleischer afirmou: «A Síria é um Estado terrorista. Abriga terroristas (...), é realmente um Estado pária e isso está assinalado pela sua presença na lista de nações terroristas elaborada pelo departamento de Estado». O porta-voz da Casa Branca lembrou ainda que «os EUA avisaram, há muito tempo, pelos canais diplomáticos, que os estados párias devem melhorar a sua conduta, não devem abrigar terroristas, não devem produzir armas de destruição em massa». «Penso que a Síria compreende a nossa mensagem», concluiu Fleischer.
Também o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, achou conveniente vir a público reforçar as ameaças contra Damasco, acusando o regime sírio de ter realizado testes com armas químicas nos últimos 12 a 15 meses e garantindo que os EUA têm informações «que indicam que houve permissão para que alguns iraquianos entrassem na Síria, em alguns casos para ficar e em outros para seguir para outros países».

A mão de Israel

A semelhança desta campanha com a desencadeada contra o Iraque é por demais evidente. A única diferença, até ao momento, está nas reacções do restrito grupo dos aliados de Bush. A insuspeita ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha, Ana Palácio, considerou «infelizes» as declarações dos responsáveis norte-americanos sobre a Síria, manifestando a opinião de que seria «muito perigoso» começar agora «a especular sobre a possibilidade de o país X ou Y ter determinadas situações».
Por seu lado, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, asseverou na Câmara dos Comuns, em Londres, que não há «nenhum plano» para invadir a Síria, e ter garantias do presidente sírio, Bachar al Assad, de que será negado «o acesso a qualquer pessoa que cruze a fronteira do Iraque na Síria».
O cerco à Síria pode estar ainda apenas na fase da agressão verbal, mas não é de somenos importância registar que por detrás desta campanha, tal como no caso do Iraque, está Israel. O próprio Ari Fleischer o admitiu ao afirmar que «Israel vem acusando o país há muito tempo de servir como canal para remessas de armas iranianas ao Hezbola, inclusive de mísseis terrestres de longo alcance». O regime iraquiano, recorda-se, era acusado por apoiar as famílias dos suicidas palestinianos.
Tudo somado, o mínimo que se pode dizer é que a situação no Médio Oriente está longe de ser tranquilizadora. E de nada valerá lembrar que «as únicas armas químicas, biológicas e nucleares na região estão em Israel, país que ameaça os seus vizinhos e ocupa as suas terras», como afirmou segunda-feira o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Síria, Buthaina Shaaban. O exemplo do Iraque, destruído e a saque, aí está para demonstrar que a vocação «libertadora» do império americano não conhece limites.
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Afinal, a questão não eram as armas

Os EUA consideram que não é «apropriado» que os inspectores da ONU regressem de imediato ao Iraque para procurar as armas de destruição maciça cuja alegada existência «justificou» o ataque anglo-americano àquele país à revelia de qualquer decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Falando à imprensa no comando central norte-americano no Qatar, o brigadeiro-general Vincent Brooks afirmou anteontem, terça-feira, que os EUA continuam convencidos da existência de tais armas, mas que as buscas se desenrolam «sob controlo militar», pelo que na sua óptica «não seria apropriado associar quem quer que fosse a esta equação».
Segundo Brooks, uma «brigada inteira», de 1500 homens, está a examinar os «sítios sensíveis» no Iraque, e quando as armas «forem encontradas», os norte-americanos tencionam manter o processo «o mais transparente possível».
Quanto à possibilidade de o «sucesso» da intervenção no Iraque poder ser posto em causa no caso de não virem a ser encontradas quaisquer armas, Brooks não podia ter sido mais taxativo: os EUA, respondeu, «sempre» disseram que o objectivo era «depor o regime». «Essa foi a primeira razão do sucesso das operações», segundo o oficial, que apontou como segundo «sucesso» o ter-se «conseguido evitar que (as armas cuja existência está por provar) tenham sido usadas» contra as forças anglo-americanas.
A lógica de Vincent Brooks é desconcertante. Durante meses, a «certeza» de que o regime de Saddam Hussein não só possuía tais armas como se recusava a eliminá-las, foi esgrimida como argumento para a «necessidade» de atacar o Iraque. Os EUA e a Grã-Bretanha chegaram mesmo a garantir ter «provas» do que afirmavam. Agora, as armas passaram para segundo plano.
Razão tinha o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, ao afirmar que a credibilidade do eventual achado de tais armas exigia a presença dos inspectores, não fosse alguém ter a tentação de «plantar» no Iraque o que ainda ninguém conseguiu encontrar.
Razão tinham todos os que, desde a primeira hora, afirmaram que a questão não eram as armas, mas o petróleo e o domínio imperial.


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