A morte perfeita
Não será a propósito da guerra que se instala nos arredores da Mesopotâmia e que «cirurgicamente» vai ceifando vidas, nem sequer das ameaças de epidemias provocadas por um estranho e «asiático» vírus que me veio à ideia falar de mortos. Nem será por este ar de primavera, pesado e triste que surge, molhado das águas de Março, que o tema me surgiu. Provavelmente nem sequer foi a crónica que não há muito ouvi na rádio, onde se tratava de choros sobre a pedra muda de túmulos onde dormem infantas. Mas, de facto - e uma vez mais - a questão me apareceu, colada a uma pergunta: porque raio os portugueses lavam tão perfeitamente os seus mortos que os deixam sem mácula visível, todos esculpidos em finos alabastros, todos prontos a perfilarem-se num altar para veneração do futuro?
Não sei se em outros lugares do mundo as coisas se passam assim. Os meus anos de exílio ocorreram há muito e não me lembro, nessa idade verde ainda, em que nem parentes nem amigos próximos morriam - a não ser ex-camaradas de armas que eram estilhaçados em terras de África -, não me lembro de passar os olhos sobre obituários em jornais da estranja. O único óbito que me interessava era o do regime, não para lhe dançar em cima do cadáver, mas pronto às alegrias das lutas e da construção que se lhe seguiu.
Hoje, quando de vez em quando morre alguém que conhecemos por uma vida contraditória e bastas vezes imperfeita - como todas de altos e baixos - acabo por não reconhecer a personagem do finado, embalsamado que foi tão prontamente e de modo tão radical que lhe chegam a retirar, com o fel, todas as manchas e nódoas. No perfil de cera, gravam-lhe supostas virtudes, na alquimia das qualidades extraem-lhe alturas morais, na barrela final surge-nos um morto perfeito. Talvez um santo, como diria o Padre António Vieira falando do labor dos estatuários.
Um dia destes, quando se finar um ditador, haverá democratas engravatados a benzer-se e a choramingar, exaltando as qualidades de, por exemplo, um Bush. E ficará o homem como defensor dos direitos humanos. Nem que o tenha conseguido esmagando os povos. Amen.