Cabidela

Anabela Fino

Longe vão os tempos em que a canja e as pernas de galinha eram um maná reservado a mulheres paridas e doentes, pitéu de casamentos e dias santos. Com a invenção dos aviários democratizou-se o consumo dos galinácios, cujo preço acessível cativou a bolsa sempre magra da maioria dos portugueses. No espaço de uma geração as aves destronaram o bacalhau da mesa dos portugueses, não por vontade nem por gosto mas pelo simples facto de o «fiel amigo» se ter afidalgado na proporção inversa da proletarização do frango.

Em tempos de vacas magras e loucas, de pestes suínas e bruceloses, o frango ganhou terreno e instalou-se no cardápio nacional com honras de pratos para todos os gostos e, mais importante ainda, para todas as bolsas.

Sempre pragmáticos, os portugueses passaram das mil e uma maneiras de fazer bacalhau para as mil e duas maneiras de cozinhar frango, resistindo heroicamente ao enjoo em nome do equilíbrio financeiro. Mais de um milhão de aves consumidas por dia num país tão pequeno é obra, digna, se não do Guiness, pelo menos do respeito dos produtores.

Ora acontece que de um dia para o outro a confiança dos consumidores foi abalada pelo nitrofurano, palavrão de súbito introduzido no léxico das famílias que trocado por miúdos significa perigo grave no consumo de frangos. Ao que dizem os especialistas trata-se de uma substância proibida, potenciadora de cancro, usada na medicação das aves para que resistam às sequelas do regime intensivo de crescimento e engorda a que estão sujeitas, de forma a que mais rapidamente o produto da sua venda encha os bolsos dos criadores. O fenómeno não é novo, mas os contornos do escândalo são de arrepiar.

Sabe-se agora que desde o ano passado os organismos responsáveis estavam de posse da informação de que o nitrofurano estava a ser utilizado em dezenas de explorações e nada fizeram para pôr cobro ao crime - porque é de crime que se trata -, pondo em causa a saúde pública. Mais, entre a descoberta do nitrofurano e o sequestro das explorações que o utilizavam decorreram pelo menos três meses, durante os quais o país consumiu alegremente aves contaminadas. Mais ainda, o director-geral de Veterinária em funções nesse período foi substituído a 11 de Fevereiro por razões que o ministro da tutela, Sevinate Pinto - curioso none - ainda não explicou, tal como ainda não disse quais as empresas envolvidas, o que faz com que o ónus da suspeita se abate sobre todas as explorações do sector. E para terminar, o ministro Pinto diz que não vê motivos para não se continuar a consumir frango, embora admita que nos últimos tempos os galinácios não têm aparecido nas refeições «lá de casa» por opção da respectiva esposa, com quem garante não ter discutido o assunto. Cenas domésticas à parte, importa registar a estranha passividade dos restantes 3900 aviários do país que, até prova em contrário, não estão envolvidos no escândalo do nitrofurano.

Nesta cabidela de interesses a que as aves são alheias, uma questão se coloca: que interesses está o ministro a proteger?

O consumo de aves caiu a pique. Não é bem a revolta das galinhas, é o medo dos consumidores. Mais descansados andam os responsáveis. ainda ninguém se demitiu nem consta que alguém considere vir a fazê-lo. É a política à portuguesa.



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