A batuta dos «grandes»
A recente proposta franco-alemã sobre a futura arquitectura institucional da União Europeia (UE) tem como objectivo a tentativa de limitar o actual debate sobre a reforma dos Tratados num quadro que assegure os interesses e o domínio das grandes potências. Tal intenção é tanto mais evidente, quando os governos da Grã-Bretanha, Itália e Espanha deram o seu imediato e significativo apoio a tais propostas. Aliás, certo da sua força e da submissão e anuência dos restantes governos, incluindo o governo PSD / CDS-PP, o representante do Governo da Grã-Bretanha na «Convenção sobre o futuro da EU» afirma desde já que tais propostas se acabarão por impor.
E o que pretendem os governos da França e da Alemanha? Pretendem a criação de uma "constituição europeia", com a integração da Carta dos Direitos Fundamentais. O reforço do poder político das instituições da UE (o Conselho na política externa, de defesa e justiça e assuntos internos; a Comissão, no quadro das suas competências, no controlo dos Estados membros; o Parlamento Europeu com a extensão da co-decisão). O fim das presidências rotativas no Conselho Europeu e a eleição de um presidente por maioria qualificada. A eleição do presidente da Comissão pelo Parlamento Europeu. O reforço da representatividade dos países na UE tendo em conta o critério populacional. A extensão da decisão por maioria qualificada e a limitação do direito de veto. Uma reorganização do Conselho e da Comissão Europeia que reforça o papel de coordenação política do primeiro em áreas determinantes e cria a distinção entre comissários de «primeira» e de «segunda» na segunda. A existência de um «ministro dos assuntos externos» da UE. A separação das funções «operacionais» e «legislativa» do Conselho. Entre outros aspectos.
Ou seja, propostas que apontam para o aprofundamento da actual integração de cariz federalista, garantindo o domínio dos «grandes» na UE, no caminho da criação de um «governo europeu» (para já, com «inspiração» na arquitectura institucional francesa). Aliás, Giscard D'Estaing, Presidente da Convenção, torna clara tal intenção, ao afirmar que, na sua perspectiva, a evolução das instituições da UE será no sentido da «emergência de funções federais nas duas instituições com vocação executiva - o Conselho e a Comissão - que acabarão um dia por se unir, para dar origem ao governo da Europa Unida» (Le Monde 13.01.03).
Acordos e contradições
Será ainda de salientar, tendo em conta as reacções a tais propostas, nomeadamente em Portugal, que não é um maior aprofundamento da actual «integração europeia» nos seus principais eixos - federalista, neoliberal e militarista - que coloca dificuldades às forças políticas e outros protagonistas que estão na sua génese. Quando recentemente a França e a Alemanha apresentaram propostas no sentido de aprofundar a comunitarização da política externa, da política de defesa e da justiça e assuntos internos ou do reforço da «governação económica» ao nível da UE, não se ouviram criticas ou distanciamentos dos actuais governos dos países da UE. Aliás, tais propostas foram quase na sua totalidade adoptadas pela Convenção, pelo que, existe acordo entre as principais forças políticas que a dominam (direita e social-democracia) quanto ao reforço das competências da UE e das suas instituições supranacionais.
A contradição que se coloca é no quanto é que os «grandes» e os «outros» vão pesar nas instituições e no processo de decisão ao nível da UE. No passado, de que é exemplo recente o Tratado de Nice (ratificado pelo PSD, PS e CDS-PP), ficou evidente a imposição dos «grandes» e a capitulação dos «outros». Ou seja, a integração avança se as grandes potências salvaguardarem os seus interesses e domínio - o compromisso franco-alemão é um entendimento entre estes dois países nesse sentido. Aliás, não se vislumbra como é que as grandes potências iriam abrir mão das suas intenções, seja na Comissão ou no Conselho, pois as suas propostas quanto às duas instituições vão no mesmo sentido.
A defesa dos interesses do País, a salvaguarda da soberania de Portugal nas suas diferentes vertentes, não passa pela falsa dicotomia do «federalismo pela via da Comissão» ou do «federalismo pela via do Conselho» - as intenções expressas por Giscard D'Estaing são bem claras quanto a este aspecto.
O que se exige é a firme afirmação da defesa dos interesses nacionais, que passa, entre outros aspectos, pela não transferência de mais competências para a União Europeia, pela existência do direito de veto em questões fundamentais para o País, pelo reforço do peso no processo de decisão, pela manutenção da actual rotatividade das presidências do Conselho e do comissário nacional de forma permanente, pelo reforço do papel dos parlamentos nacionais no processo de decisão, pela manutenção do português como língua oficial e de trabalho, por uma Europa de cooperação entre estados soberanos e iguais em direitos.