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Dorival Caymmi
A preguiçosa criatividade

• Duda Guennes



Aos 88 anos, Dorival Caymmi é o patriarca da música popular brasileira (MPB). Criador de um universo à parte. Obra que passa pelas canções praieiras, influenciadas pelos ares de Salvador da sua infância, desemboca em sambas-canções urbanos nos quais assume a carioquice da cidade que adoptou para viver e lança as bases para a valorização das raízes africanas – a viga mestra na qual se estrutura todo o edifício da MPB.

Dorival CaymmiModesto, Caymmi rejeita classificações: «Não sou um criador do género chamado canções praieiras. Foi uma coisa que aconteceu naturalmente, do mar, pela preguiça gostosa de olhar o horizonte, os azuis se encontrando, aquela beleza romântica, o nascer do sol. Sou um apreciador da natureza desde a infância, então trouxe aquilo para a música». E vai ainda mais longe: «O importante na vida é olhar a paisagem».

Se em quantidade tem um acervo relativamente pequeno – cerca de cem canções – qualitativamente é magnífico, pedras lapidadas com admirável maestria, música e letra encaixadas com precisão

«Aprendi a fazer música com esse jeito folclórico, ligado à terra. Com o objectivo único de agradar a mim. Agradar os amigos. Sempre desejei fazer poesia dentro de uma realidade: uma poesia presa às raízes, saída da vida dos pescadores que conheci pessoalmente. Só penetra no povo o que realmente tem raiz», teoriza o Buda Nagô da MPB.

Além de lapidar as suas músicas com uma precisão de ourives (passou sete anos para compor João Valentão), Caymmi, que é o melhor intérprete das suas próprias músicas, possui uma voz possante e um jeito brejeiro de as cantar. Cantar manso de quem não tem pressa e que está em paz com a vida.

Elogio à preguiça

Segundo Jorge Amado, «a música de Caymmi muito deve a essa preguiça, ou melhor, a esse tempo baiano». «Caymmi leva meses e meses trabalhando cada uma de suas músicas e letras, ao sabor do tempo e da preguiça baiana e criadora», completa o Amado escritor, amigo, parceiro, conterrâneo e compadre de Caymmi.

Nascido em Salvador (30-4-1914), Caymmi, como grande parte da mocidade intelectual nordestina, optou pelo Rio de Janeiro, então capital do Brasil, para tentar uma carreira mais promissora. Com quase 24 anos pegou um ita (barco costeiro) e foi para o Rio morar (como deixou registado numa das suas mais famosas canções).

Já lhe haviam dito que o Rio era a terra da música. «Se você fizer sucesso, fica rico», essa frase ficou-lhe na memória. Munido da sua voz possante e o violão bem afinado, foi à procura de sua hora e sua vez, que não demorou. O primeiro contrato na Rádio Tupy rendia-lhe 240 mil-réis mensais. Dois meses depois passava para a Transmissora já com 600$000 por mês e mais tarde, ingressava na Rádio Nacional (a TV Globo da época), com 700$000 por mês e muita publicidade. No final deste 1938, a cantora Carmem Miranda gravou O Que é Que a Baiana Tem?. Daí para frente o jovem compositor baiano nunca mais parou de fazer sucesso.

Hoje, aos 88 anos, lúcido e activamente preguiçoso, Caymmi continua a ser de entre os grandes aquele cuja obra ostenta o menor índice de redundância e, portanto, a maior taxa de informação estética.

Concerto com conserto

Estória contada pelo jornalista João Gabriel de Lima: «O compositor Dorival Caymmi, dono de um ritmo de trabalho único na música brasileira – chega a ficar dez anos lapidando uma canção e não se cansa de elogiar a preguiça – colecciona, por incrível que pareça, relógios de pulso. Tem modelos de todos os tipos: suíços, japoneses, clássicos, digitais, com ponteiros e despertadores. Ao ser convidado para se apresentar com a família no Festival de Montreux 91, na Suíça, ficou empolgado não com o concerto, mas com um conserto. Poderia, finalmente, levar para o relojoeiro seu velho Eterna de ouro, parado havia anos. Ao examinar o xodó da colecção de Caymmi, o relojoeiro suíço constatou que não havia nenhum problema com ele. «O defeito do relógio era a preguiça», conta Caymmi. «Não o usava há anos e, por isso, ele acabou parando. Foi só dar umas chocoalhadas que ele funcionou de novo». Moral da história: nem os suíços foram capazes de inventar, até hoje, um relógio capaz de marcar o tempo de Dorival Caymmi».

Piada baiana: os baianos funcionam em três velocidades: devagar, muito devagar e Dorival Caymmi.

Elogio: «a maior homenagem que recebi na vida foi a de um bêbado, num bar de Salvador, que, na hora de espremer o limão na cachaça, estendeu a mão gritando para mim: "Caymmi, toma meu limão para botar na tua cachaça".»

Discografia básica de Dorival Caymmi

«Canções Praieiras», Odeon, 1955
«Caymmi e o Mar», Odeon, 1957
«Eu Vou Pra Maracangalha».Odeon 1957
«O Mar... O Violão... Caymmi e Suas Composições Praieiras, Odeon, 1957
«Ary Caymmi/Dorival Barroso», Odeon, 1958
«Eu Não tenho Onde Morar», Odeon, 1960
«Caymmi Visita Tom e Leva Seus Filhos, Nana, Dori e Danilo», Elenco, 1964
«Caymmi (Kai-ee-me) and the girls from Bahia», Warner/Odeon, 1965
«Vinicius/Caymmi no Zum-Zum», Elenco, 1967
«Encontro com Dorival Caymmi», RCA, 1969
«Caymmi», Odeon, 1972
«Caymmi Também é de Rancho», Odeon, 1973
«70 Anos de Caymmi», Funarte, 1984
«Caymmi, Som, Imagem e Magia», EMI-Odeon, 1987
«Família Caymmi em Montreux», PolyGram, 1991
«Caymmi Inédito», Universal Music, 1997

 

«Avante!» Nº 1499 - 22.Agosto.2002