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Entrevista a Cláudia Dias,
bailarina e coreógrafa,
da organização do Avanteatro
Conhecer a Nova Dança Portuguesa



Cláudia Dias, bailarina e coreógrafa, actualmente a trabalhar na companhia RE.AL, faz parte da organização do Avanteatro, espaço que este ano apresenta vários espectáculos da «Nova Dança Portuguesa». Em entrevista, Cláudia Dias explica o que é este movimento e fala sobre os principais problemas dos bailarinos portugueses.

– A dança é vista como uma arte de segunda?

Cláudia DiasEm termos políticos, é. Se compararmos o montante das verbas atribuídas nos concursos de apoio à dança e ao teatro, vemos que são bastante diferentes. Há mais actividade teatral, por isso o montante tem de ser superior, mas o que é atribuído a cada projecto na área do teatro é muito superior à área da dança. Obviamente que há mais público para teatro do que para dança.

– Mas isso tem a ver também com a oferta e os hábitos culturais?

Tem a ver com a tradição. A dança em Portugal é uma arte relativamente recente, muito mais do que o teatro. Mas isso está a mudar.

– A situação da dança é pior do que noutras artes?

Não necessariamente. Não existe uma política cultural, logo todas as áreas são afectadas, cada uma com as suas especificidades, mas a questão coloca-se da mesma forma. O que acontece é que tivemos o movimento do teatro independente logo após o 25 de Abril e essas estruturas que na altura eram extremamente frágeis agora estão consolidadas. O Teatro da Cornucópia é um exemplo disso. Na dança isso não acontece, porque há uma diferença de dez ou quinze anos. Agora estamos no auge das estruturas independentes na área da dança, que vivem numa fragilidade imensa. Tanto o teatro como a dança são vítimas da ausência de uma política cultural.

– E comparando com outros países da União Europeia?

As pessoas vão sempre buscar os melhores exemplos ao modelo francês. O que acontece na área da dança em França não tem nada, mas nada a ver com a realidade portuguesa. Eles criaram um sistema com o apoio do poder central, foi criada uma rede de centros nacionais de dança, há centros regionais de dança, escolas em todo o país… Existe uma espécie de partilha de responsabilidades, o que significa que quando um governo cai os agentes no terreno não caem. A questão que se coloca agora aos franceses é: «Estamos demasiado institucionalizados. Como vamos trabalhar isto?» Nós nem sequer criámos um sistema.

– Esse será o melhor exemplo. E nos outros países?

Do ponto de vista da política cultural, o melhor exemplo é o francês, mas acho que as coisas mais interessantes se estão a fazer na Bélgica. É um país que está no centro, que recebe informação de uma série de países e de pessoas diferentes. Em Portugal isso não se coloca, nós somos claramente um país periférico.

– Em Portugal há mais saídas do que entradas?

Isso agora começa a mudar um pouco. Há uma série de festivais que criaram algumas raízes. Já podemos dizer que assistimos a espectáculos de grande contemporaneidade. Recebemos ou partimos, mas não existe propriamente uma miscigenação.

– Os grupos de trabalho «Dez Mais Dez» reivindicam uma alteração à política cultural. Em que sentido?

Quando se fala em política cultural, as pessoas têm ideia que os artistas só querem dinheiro na lógica da «subsídio-dependência». Efectivamente isso não é verdade. As coisas são mais mediatizadas quando saem os resultados das atribuições de subsídios, mas esses concursos são apenas uma parte de toda a problemática. É óbvio que o regulamento dos concursos deve reflectir as expectativas das pessoas que estão no terreno e não deve ser elaborado por «pessoas de gabinete». Deveria haver um diálogo real e constituir-se uma espécie de grupo de interlocutores.

Por outro lado, tem de haver um aumento na verba atribuída à dança. Dentro do orçamento geral do Estado, o orçamento para a cultura é tão baixo (já em 1978 se falava no mítico um por cento que ainda não foi atingido) e, dentro deste, cabe à dança uma verba pequena. Esta questão deveria ser regulamentada e não andar ao sabor das políticas. Normalmente com os governos de direita a área da cultura é extremamente afectada, porque impera a lógica de uma vertente nacionalista da cultura, ligada ao património. As áreas ligadas à contemporaneidade são as primeiras a ser afectadas.

Do que sentimos mesmo falta é de um investimento estrutural, que permita continuidade e o aparecimento das novas gerações. Na Nova Dança Portuguesa há uma série de pessoas com um trabalho reconhecido no estrangeiro e, por falta de investimento nas estruturas que dirigem (a nível de espaços ou de ensino), todo esse material não foi rentabilizado.

As novas gerações vivem uma situação um bocado esquizofrénica: olhamos para os pioneiros da Nova Dança Portuguesa, vemos que eles produzem e temos a noção que também podemos fazer, mas quando vamos fazer não temos formação para isso. Sente-se uma certa ânsia por parte dos programadores de criar uma continuidade nas pessoas que vão surgindo e o que acontece são apresentações em grandes espaços de pessoas que ainda estão «à procura». Assiste-se a muitos actos suicidários das novas gerações porque ainda não têm uma formação consistente. A sua formação é aos solavancos, uma vez aqui, outra ali. São pessoas que, também influenciadas pelos pioneiros da Nova Dança Portuguesa, rejeitaram o sistema de ensino oficial, que é completamente obsoleto, tanto a Escola Superior de Dança como a Faculdade de Motricidade Humana, se bem que ultimamente tenha aberto umas brechazinhas a professores relacionados com a Nova Dança.

– A que se deve essa inadequação do ensino oficial?

Para já não existe diálogo entre o Ministério da Cultura e o Ministério da Educação, o que não faz sentido. Por outro lado, as pessoas que estão à frente das instituições já deram o seu contributo e se calhar precisariam de ser renovadas.

– Quais são as consequências?

Quando as pessoas saem dessas escolas não estão aptas para o mercado de trabalho da dança contemporânea. Os coreógrafos da Nova Dança Portuguesa têm imensa dificuldade ao escolher pessoas que são formadas nessas escolas, porque não estão aptas a fazer este tipo de trabalho.

– Isso significa que aprenderam algumas técnicas e não outras?

Significa que podem ser bons na área da dança clássica ou de uma dança modernista, mas todas as técnicas que surgiram nos Estados Unidos relacionadas com a improvisação não são dadas, apesar de serem as matérias com que os coreógrafos trabalham.

– Essas técnicas têm quantos anos?

São coisas dos anos 50.

– Que possibilidade tem um bailarino de descobrir a sua vocação para a dança, de aprender a dançar e depois de dançar profissionalmente?

Nas escolas devia haver uma vertente relacionada com as artes performativas, embora já exista alguma coisa para o teatro. Se contactas com as ciências sociais e as ciências exactas, também poderias poder contactar com as artes performativas. Logo aí os alunos deveriam ver se sentem aptidão para ir para a área do espectáculo. Depois de feito o secundário, deveriam ter a possibilidade de ir para uma universidade tirar um curso na área da dança. Este ano vai abrir um curso na Faculdade de Letras de Lisboa ligado às artes performativas, mas a dança não consta. A nível das universidades devia haver uma abertura. No ensino oficial devia haver uma reformulação profunda a nível dos conteúdos programáticos.

– É fácil ser profissional mesmo para uma pessoa que tenha formação?

No nosso país ser profissional é não ter carreira. O mercado de trabalho não está regulamentado e o estatuto profissional do bailarino não existe. É muito difícil e geram-se situações estranhas, com pessoas que nunca tiveram formação na área da dança a fazer coreografias e a sair na primeira página do Expresso. O que resta às pessoas que têm formação em dança é sujeitar-se às poucas audições que vão existindo. É muito difícil.

– O desemprego é uma situação comum?

o espectáculo de João Fiadeiro e Rui CatalãoAs pessoas que vão para as companhias têm a sua situação mais ou menos estabilizada, apesar dos ordenados serem extremamente baixos, para além de não se fazer descontos para a segurança social. Quem opta por tentar a sua sorte nas estruturas independentes tem períodos de trabalho e largos períodos de não trabalho…

Deveria ser elaborado um estatuto profissional para o bailarino, o coreógrafo e o formador e contemplasse o sistema de intermitência. Quando se está a trabalhar, está-se a receber com um contrato; quando não se está a trabalhar, teríamos direito a uma espécie de subsídio entre contratos. É o que se passa no sistema francês.

Em Portugal, muitas vezes quando estamos a trabalhar nem sequer temos contrato ou se temos não tem nada a ver com a realidade burocrática. Quando acabamos esse período de trabalho nem sequer temos direito ao fundo de desemprego. Mesmo que estejam a trabalhar e a receber relativamente bem, as pessoas fazem a divisão desse ordenado para o resto dos meses. Se fores ao Bairro Alto vês imensas pessoas da dança a trabalhar em bares.

Educar para a arte

– Qual é a importância da profissionalização?

Uma coisa que devia mesmo existir é a regulamentação do mercado de trabalho e um estatuto profissional com a atribuição de carteira profissional em moldes actualizados para que pessoas de outras áreas possam entrar no meio da dança. Hoje trabalha-se muito com bailarinos e actores na mesma produção. Outra questão é a idade da reforma. A dança ainda não foi reconhecida como profissão de desgaste rápido e os bailarinos têm reforma aos 65 anos, o que é hilariante. Partem do princípio que somos todos Pina Bausch.

– Para além da falta de espaços próprios, da inexistência de um estatuto profissional e de um sistema de protecção social, quais são os principais problemas da dança em Portugal?

Há a questão da apresentação. Com o ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho foram introduzidas questões muito importantes como a reabilitação de cine-teatros e o programa «Itinerancia». Existem agora espaços físicos, mas não há formação para as pessoas que lá estão. Tens um espaço, mas não tens um programador que saiba o que se está a fazer e não tens equipas técnicas criativas.

És um coreógrafo independente, recebes um apoio pontual, fazes dois ou três espectáculos, vão as pessoas do circuito e pronto! Estamos a falar de dinheiros públicos e, se recebes um subsídio, deves levar o espectáculo ao maior número de pessoas possível. Em Portugal é muito difícil circular com uma peça.

– Isso tem a ver também com a promoção dos espectáculos?

Tem a ver com a falta de espaços para fazeres a produção. As pessoas da segunda geração da Nova Dança Portuguesa fazem produção nas mesas do café ou nos computadores de casa. Há falhas enormes porque não há infra-estruturas. Normalmente é o bailarino ou o coreógrafo que faz a produção, porque não tem dinheiro para pagar a um produtor, o que implica falhas. As câmaras municipais também não estão motivadas. Existem autarquias mais motivadas para a área cultural. O exemplo de Almada é indiscutível.

– Há muita gente que acha a arte «chata», seja ir ao teatro ou a uma exposição. Há público para o que se faz na dança? E as pessoas conhecem a dança?

«Live», de Amélia BentesA questão do público prende-se com a questão da formação comum. Se não fores motivado desde a escola primária para determinados produtos, é muito difícil haver um público. Há experiências que comprovam que quando é feito um trabalho com a comunidade – estabelecer relação com as escolas, fazer iniciativas de formação – vais criando hábitos. Nunca poderemos pensar que o teatro ou a dança serão indústrias altamente rentáveis e o papel do Estado é insubstituível. Mas uma coisa é apoiar de uma forma equilibrada, saber que isso terá resultados, que o espectáculo vai circular, que há estruturas para a companhia rentabilizar o seu trabalho e depois tenha de pedir menos dinheiro ao Estado. Outra coisa é a distribuição fácil e descomprometida de dinheiro.

– Qual o futuro da dança em Portugal?

É um movimento que não vai parar. Há quem já fale numa terceira geração relacionada com a Nova Dança. As pessoas na área da dança estão mais motivadas com uma intervenção mais política e mais reivindicativa. Mas será que essa luta vai ter expressão cá para fora? Será que vamos envolver a sociedade? Será que vamos passar a mensagem de que apoiar a luta pela dignificação da actividade artística é ajudar a construir uma sociedade mais crítica e mais interventiva? As pessoas têm essa noção? Penso que não, mas aí a responsabilidade também é dos artistas. Há uma certa tendência para viver em circuito fechado.

É muito mau ter governos de direita, mas o «inimigo» passa a ter contornos muito mais definidos. Existe futuro para a dança em Portugal e o caminho só pode ser o da melhoria. Os bailarinos sentem que têm o direito de exercer a sua profissão no seu país, por isso vão continuar a trabalhar e a lutar.

A Festa da dança

Nas palavras de Cláudia Dias, o movimento da Nova Dança Portuguesa «surgiu espontaneamente» na década de 80, caracterizando-se fundamentalmente por constituir uma ruptura com a dança que se fazia então, considerada conservadora e académica.

«Não se pode dizer que a Nova Dança Portuguesa tenha uma linha estética ou que todos os elementos do movimento partilhem as mesmas concepções. Há quem diga que há uma especificidade na Nova Dança ligada a um certo imaginário do Sul, mas não sei se será mesmo assim», comenta a bailarina e coreógrafa.

Influenciadas pela Nova Dança Europeia e pelo Pós-Modernismo americano, a Nova Dança Portuguesa «surgiu com pessoas que saíram de Portugal para ter formação noutros lados e que quando regressaram foram criando as suas próprias estruturas e foram tendo apoio, mas não um apoio que acompanhasse o grau de maturação atingido», acrescenta Cláudia Dias.

«O que eu sou não fui sozinho», de João Fiadeiro e Rui Catalão, e «Live», de Amélia Bentes, são dois espectáculos que pretendem mostrar ao público da Festa do Avante! o trabalho desenvolvido pela Nova Dança Portuguesa.

«O que eu sou não fui sozinho» é uma conferência/demonstração, em que o bailarino e coreógrafo João Fiadeiro conversa informalmente com o jornalista Rui Catalão sobre a dança e a sua produção. No desenvolvimento dos temas, surgem rupturas retóricas e físicas e nascem traços de uma performance inesperada.

Por seu lado, «Live» é uma performance de improvisação, ou seja, uma composição em tempo real, em que o corpo da bailarina Amélia Bentes e o piano de João Lucas se encontram para um jogo de fortes contrastes. Pretende-se criar situações imprevisíveis, brincar com o acaso e as energias do momento, com a dança e a música à procura de um espaço próprio.

Na tarde de domingo, realiza-se um debate sobre o movimento com o objectivo de lançar a reflexão produzida na comunidade da dança, nomeadamente sobre questões como a dignificação da actividade artística, a construção de uma sociedade esclarecida e participativa e a necessidade da existência de uma política cultural a longo prazo. O debate conta com a participação confirmada de vários bailarinos e coreógrafos: João Fiadeiro, Amélia Bentes, Graça Passos e Ezequiel Santos.

 

«Avante!» Nº 1499 - 22.Agosto.2002