A cantiga é outra
Anda um reboliço nas redes sociais, ou como alguém já lhes chamou nos «tribunais digitais», a propósito de uma canção do último disco de Chico Buarque, intitulada Tua Cantiga. Dizem os indignados que é «machista» pelo verso «quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir», e ofensivo para a mulher do século XXI. A polémica chegou aos jornais e às televisões, e eis que o assunto se torna num verdadeiro caso de estudo, com cada qual a agarrar a ocasião para puxar a brasa à sua sardinha, aproveitando de caminho para «constatar» que «felizmente» já não há «intocáveis» e que até no Brasil acabou o «consenso nacional» em torno de Chico Buarque.
O que está em causa, está bom de ver, não é a opinião sobre a canção nem os moralismos pós-modernos que ressumem das críticas, nem tão pouco uma questão de liberdade de expressão. O que está em causa é o facto de a pretexto do alegado machismo – acusação tanto mais esdrúxula quanto se sabe que Buarque foi dos primeiros artistas a não ter pejo em encarnar a condição feminina nas suas obras – se pretender apagar o seu importante papel na denúncia, resistência e combate à ditadura brasileira, no passado, e a sua intervenção, no presente, contra os golpistas que afastaram do poder a presidente eleita Dilma Roussef e estão a destruir a democracia no Brasil.
O que está em causa não é qualquer pretensa ofensa às mulheres e filhos «abandonados», mas o regresso de um moralismo podre que privilegia as aparências em detrimento do direito à felicidade. O que está em causa é o levantar de cabeça da hidra fascista que acolhe no seio as classes ameaçadas pela democracia e que Chico Buarque tão bem retrata numa outra canção do disco, Caravanas, em que fala dos «suburbanos tipo muçulmanos» que chegam à cidade. O que está em causa é a denúncia que Buarque faz da «gente ordeira e virtuosa que apela /Pra polícia despachar de volta /O populacho pra favela /Ou pra Benguela, ou pra Guiné».