A propaganda reescreve a história

Filipe Diniz

Cada co­me­mo­ração «oci­dental» do de­sem­barque aliado na Nor­mandia, em 6 de Junho de 1944, é oca­sião para a re­pe­tição da mesma linha de dis­torção his­tó­rica. Esse de­sem­barque «mudou o curso da II Guerra Mun­dial» (Pú­blico, 6.06.2014) e «acabou com Hi­tler» (diz o eu­fó­rico DN do mesmo dia).

O pro­blema não re­side apenas no des­fi­gu­ra­mento do pro­cesso da der­rota mi­litar do nazi-fas­cismo. Re­side na es­colha de uma versão que pro­cura elidir cum­pli­ci­dades, am­bi­gui­dades, he­si­ta­ções e pe­sadas res­pon­sa­bi­li­dades dos EUA, da Grã-Bre­tanha e de ou­tras po­tên­cias ca­pi­ta­listas antes, du­rante e de­pois da Guerra. E que pro­cura elidir o papel de­ci­sivo da URSS, do Exér­cito Ver­melho e do povo so­vié­tico, dos povos em armas da re­sis­tência an­ti­fas­cista na der­rota do nazi-fas­cismo.

A aber­tura da «2.ª frente» na Eu­ropa não foi co­lo­cada «desde 1943» como diz o Pú­blico. Ob­jecto de um co­mu­ni­cado con­junto anglo-so­vié­tico em 1942, foi pro­te­lada por in­gleses e ame­ri­canos para 1943 e apenas se con­cre­tiza em 1944. De­pois das de­ci­sivas vi­tó­rias so­vié­ticas de Le­ni­ne­grado, Sta­li­ne­grado, Kursk e do seu avanço para Smo­lensk, Kiev, Don­bass. De­pois de norte-ame­ri­canos e bri­tâ­nicos terem em­pre­en­dido a ope­ração na Tu­nísia e na Líbia. De­pois da ofen­siva aliada no Me­di­ter­râneo e em Itália, e da ren­dição da Itália em Se­tembro de 1943.

A vi­ragem na evo­lução do con­fronto já se ve­ri­fi­cara antes do de­sem­barque na Nor­mandia. Toda a his­tória pos­te­rior in­dica que o ob­jec­tivo es­tra­té­gico fun­da­mental desse de­sem­barque não é a «der­rota de Hi­tler». É im­pedir que essa der­rota su­ceda ex­clu­si­va­mente pe­rante a ofen­siva do Exér­cito Ver­melho. É im­pedir que a der­rota mi­litar do nazi-fas­cismo seja também a der­rota po­lí­tica do grande ca­pital que o gerou e apoiou, e não apenas na Ale­manha e em Itália.

É nesses termos que a II Guerra Mun­dial ter­mina com duas ac­ções mons­tru­osas sem qual­quer jus­ti­fi­cação mi­litar: o bom­bar­de­a­mento de Hi­ro­xima e Na­ga­saki, para im­pedir a ren­dição ja­po­nesa à URSS; e o bom­bar­de­a­mento de Dresden que, se­gundo um me­mo­rado da RAF da al­tura, ser­viria para «atingir o ini­migo onde lhe dói mais […] e de ca­minho mos­trar aos russos quando che­garem o que o co­mando de bom­bar­de­a­mentos é capaz de fazer».

 



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