O sofisma da «morte» dos dirigentes desportivos

A. Mello de Carvalho

O de­sa­pa­re­ci­mento dos di­ri­gentes des­por­tivos vo­lun­tá­rios, be­né­volos, que de­sen­volvem um tra­balho cons­tante nos seus clubes, é anun­ciado em todo o lado. As pró­prias fe­de­ra­ções des­por­tivas são, em muitos casos, as mais acér­rimas de­fen­soras deste de­sa­pa­re­ci­mento, po­sição que as­sume uma im­por­tância es­pe­ci­al­mente ele­vada de­vido à sua «con­quista» ver­da­dei­ra­mente he­ge­mó­nica de uma po­sição do­mi­nante em todo o sis­tema Des­por­tivo Na­ci­onal e que in­fluência de­ci­si­va­mente a cha­mada «opi­nião pú­blica».

Ar­gu­menta-se que os clubes estão a de­sa­pa­recer, com eles os seus di­ri­gentes e que, seja como for, estas an­tigas ins­ti­tui­ções, pelas suas ca­rac­te­rís­ticas, já não são ca­pazes de res­ponder às novas ne­ces­si­dades. Ora, tudo isto é falso e con­tradiz, fron­tal­mente, a evo­lução que se ve­ri­fica na re­a­li­dade, mas tudo isto pode ser dito porque con­ti­nu­amos a não pos­suir es­tudos fiá­veis sobre o que se passa neste sector da ac­ti­vi­dade so­cial. E esses es­tudos não são feitos (e de­viam sê-lo, antes do mais, pelas uni­ver­si­dades sus­ten­tadas pelo Es­tado e pelas pró­prias fe­de­ra­ções e seus or­ga­nismos re­pre­sen­ta­tivos) porque, num caso, pouco in­te­ressa a re­a­li­dade e noutro porque não convém.

Ano após ano, dé­cada após dé­cada, du­rante mais de um sé­culo, os di­ri­gentes as­so­ci­a­tivos vo­lun­tá­rios do nosso país de­sen­vol­veram um tra­balho cons­tante que foi o único que ga­rantiu o des­porto que fomos tendo (e con­ti­nu­amos a ter). Esses ho­mens, que hoje são, cer­ta­mente, vá­rias de­zenas de mi­lhares e al­gumas mu­lheres (bem poucas com­pa­ra­ti­va­mente), tra­ba­lhando no seu clube sem re­ce­berem qual­quer re­mu­ne­ração em troca, foram sempre olhados com es­tra­nheza e nunca viram a sua acção de­vi­da­mente re­co­nhe­cida.

Até há 20 – 25 anos essa acção foi des­va­lo­ri­zada porque não se in­seria na visão de um tra­balho útil. De aí para cá, e agora cada vez mais for­te­mente, con­si­dera-se como com­ple­ta­mente de­sa­de­quada à so­ci­e­dade ac­tual, até porque esses in­di­ví­duos não pos­suem ca­pa­ci­dades, nem qua­li­fi­cação, para re­sol­verem os pro­blemas a que lan­çaram mãos: di­rigir os clubes e con­tri­buir para a di­fusão da prá­tica des­por­tiva. Tanto mais que esta or­ga­ni­zação, ainda por cima, não visa obter lu­cros fi­nan­ceiros e o tra­balho, ao con­trário do que se de­fende por todo o lado, é feito de­sin­te­res­sa­da­mente do ponto de vista fi­nan­ceiro. Além disso, todos falam nessas de­sa­de­qua­ções, mas nin­guém de­fine qual o sen­tido da­quela qua­li­fi­cação.

Enfim, estão de­sa­jus­tados à so­ci­e­dade pós-mo­derna e pós-in­dus­trial. Devem, por isso, de­sa­pa­recer e ser subs­ti­tuídos por outro tipo de or­ga­ni­za­ções, mais efi­cazes, e, es­pe­ci­al­mente fi­nan­cei­ra­mente mais ren­tá­veis, e os seus di­ri­gentes devem ser de­vi­da­mente qua­li­fi­cados para ga­rantir esta ren­ta­bi­li­zação, mas a sua re­mu­ne­ração fi­nan­ceira é in­dis­pen­sável. Não pensar em «es­ta­tuto» com­pen­sador, mas, pura e sim­ples­mente, numa re­mu­ne­ração que lhes per­mita pro­fis­si­o­na­li­zarem-se e que é ga­ran­tida pela gestão da «em­presa pri­vada» em que o clube des­por­tivo se deve trans­formar.

Pode dizer-se que esta é uma forma de­ma­siado sim­plista de expor a questão.

To­davia, o que não é nada sim­plista é que o nú­mero de clubes des­por­tivos e dos seus di­ri­gentes não tem ces­sado de au­mentar e é, no pre­sente, bem maior do que era há 30 anos – apesar da in­com­pre­ensão geral, das di­fi­cul­dades e da falta de re­co­nhe­ci­mento da sua acção pelos po­deres pú­blicos. Por­tanto, aquilo que se afirma sobre o seu de­sa­pa­re­ci­mento, não é mais do que um dos muitos so­fismas que con­ti­nuam a pre­va­lecer na nossa so­ci­e­dade.

Po­demos ver essa evo­lução no Quadro anexo que se apre­senta para que o leitor fique com uma noção clara dessa evo­lução. (In­fe­liz­mente só o po­demos fazer para a Re­gião Centro, a única que re­a­lizou um es­tudo deste tipo, com um mí­nimo de se­ri­e­dade. Mas es­tamos con­ven­cidos que este traduz, com va­ri­a­ções pró­prias mas pouco sig­ni­fi­ca­tivas a evo­lução na­ci­onal global *).

Este quadro sín­tese, ob­tido a partir de es­tudos que abrangem cerca de 20% da po­pu­lação na­ci­onal, de­monstra como está en­ga­nada a opi­nião pú­blica em re­lação à si­tu­ação do as­so­ci­a­ti­vismo des­por­tivo (se mul­ti­pli­carmos por 5 o n.º ob­tido pode-se pensar numa po­pu­lação pró­xima dos 100 000 di­ri­gentes ac­tu­ando em todo o País). Além disso, con­traria a ideia de muitos «téc­nicos» de que o di­ri­gente as­so­ci­a­tivo está con­de­nado a de­sa­pa­recer por ine­fi­cácia e au­sência de sig­ni­fi­cado e valor so­cial. No fundo trata-se de um fe­nó­meno que, em toda a sua com­ple­xi­dade, con­traria aber­ta­mente certas teses muito cor­rentes do ne­o­li­be­ra­lismo, com uma par­ti­cu­la­ri­dade im­por­tante dele se ma­ni­festar com tanto mais força quanto está de­sen­vol­vida a so­ci­e­dade.

 _______________

Ano de fun­dação dos     Nú­mero de clubes         Nú­mero de di­ri­gentes
clubes des­por­tivos        exis­tentes es­ti­mados    (12­di­ri­gentes/
clubes)**                                                    

1900..................................65...............................780

1930................................146..............................2752

1974................................511..............................6132

1985...............................1088............................13056

1992...............................1430............................17800

________________

 *Dados re­co­lhidos em A. Melo Car­valho – O Clube Des­por­tivo Po­pular – Edit. Campo das Le­tras, Porto.

** Con­si­dera-se uni­ca­mente os ele­mentos eleitos (as­sem­bleia geral – 3, Di­recção - 4, Con­selho Fiscal – 3), fi­cando de fora todos os sec­ci­o­nistas e ou­tros co­la­bo­ra­dores que também exercem fun­ções di­rec­tivas, e que, num clube médio re­pre­sen­tará um au­mento sig­ni­fi­ca­tivo não cal­cu­lável por falta de in­for­mação.



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