A nova pele de cordeiro – IV

Jorge Messias

Tem interesse informativo observar-se como a grande «crise do capitalismo» se reflecte na crise paralela que a Igreja atravessa. Todas as grandes referências de cada uma dessas milenares instituições surgem postas em causa. O Poder central mostra-se incapaz de resolver os problemas fundamentais - económicos, financeiros e sociais. Da parte da Igreja, revelam-se as mesmas fragilidades da perda de influência sobre as massas populares, da capacidade eclesiástica de dar respostas aos problemas que o materialismo agnóstico crescentemente suscita e das dificuldades que revela ao tentar refrescar os estilos do clero ou em renovar as estruturas eclesiais.

A identidade (ou a oposição) entre a natureza da intervenção do Estado e a doutrina social da Igreja tem igualmente inegável interesse, sendo certo que no campo das realidades prevalece sempre uma enorme atracção entre as duas. Há dinheiro e há poder. Há experiência política em ambas as partes. Dir-se-ia, pois, existir actualmente terreno fértil para uma unidade de interesses e de objectivos. Mas não.

Se os objectivos são os mesmos – a posse do poder e do dinheiro – o ponto de partida e a procura das tácticas adequadas estão muito desalinhados. Desde os finais dos anos 50, o capitalismo alucinou-se com os seus próprios êxitos. Queimou etapas para mais depressa atingir o sucesso final. Arriscou «tudo por tudo» e fixou metas utópicas. É a história e o ponto actual do capitalismo, da globalização.

A hierarquia da Igreja, pesadamente ortodoxa, deixou-se embalar demasiado tempo pelos seus antiquíssimos sonhos de grandeza e pelos seus bolorentos dogmas, encobertos pelos véus de uma decrépita e desacreditada santidade. Assim se chega aos quadros que se deparam às actuais hierarquias: a Igreja precisa de se «modernizar» mantendo intactas as alianças com o capitalismo e recobrindo-as com uma original e inovadora «pele de cordeiro».

Quanto ao sistema capitalista, apoiado em complexas estruturas financeiras (para as quais «parar é morrer») e senhor de poderosas tecnologias, reconhece agora ter-se precipitado e precisar de efectuar «recuos tácticos». Avançou cedo de mais e cometeu o erro básico de ter triturado a economia produtiva. Por outro lado, foi pouco hábil no encobrimento da teologia da santificação do lucro e do dinheiro. Julgou poder dispensar o «ópio do povo» tradicional. Erros de palmatória que terá de corrigir urgentemente, se puder. Ficando bem claro que o que se pretende não é «retirar» mas apenas «realinhar». Mudam-se os comparsas, mudam-se os cenários: políticas e objectivos serão exactamente os mesmos.

 

As contra-ofensivas bem ordenadas


Do lado da Igreja, já as mudanças tácticas começam a revelar-se nos discursos oratorianos. Não há tempo a perder. O clero, «perito em humanidades» e forte em verbo divino, começa por aí a anunciada «transfiguração». Vamos começar a ouvir os bispos a falarem «linguagem de esquerda».Vamos ver padrões do património popular das lutas pela liberdade serem manipulados para veicularem melhor o caos dos padrões da «sociedade civil», do perdão fraterno, da solidariedade cristã, da filantropia dos ricos ou das virtudes teologais. A nuvem negra da exploração do homem pelo homem permanecerá oculta, para melhor desferir depois os seus raios destruidores. Como por magia, o FMI, o Banco Europeu, as centrais patronais, a NATO, a banca ou as Bolsas, transformar-se-ão em catedrais onde os anjos entoam

coros em louvor da paz, da justiça, da liberdade e do progresso. E, tocadas pela «revelação», as grandes fortunas pessoais irão acelerar a sua corrida à filantropia e investir o seu dinheiro na terra de missão que é o «combate à pobreza».

Nesta fase inicial, os bispos portugueses saltam a sua tradicional «barreira de silêncio» e começam a surgir como agitadores político-sociais das lutas de classes: o modelo económico em curso é «indecente» e as altas retribuições a quadros do Estado, «exorbitantes»; o Orçamento do Estado 20l1 consagra graves injustiças sociais; os pobres não são prioridade para o actual Governo; etc. Toda esta verbosidade escorre pelos moldes tradicionais da igreja, através de acusações genéricas que não implicam fundamentação nem identificação precisa de vítimas e culpados, ambiguamente, e com uma porta sempre entreaberta para todos os corredores.

Pior, ainda: permitem-se insinuar que a hierarquia da Igreja não tem informação sobre o que se passa nas esferas do poder e não tem culpas, ela também, em tudo quanto se passou, passa e virá a passar-se em Portugal!...

A culpa morre solteira.



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