Ilegal, disse ele
Em vésperas do suposto grande momento de afirmação portuguesa no quadro internacional que seria a Cimeira de Lisboa, o secretário-geral do PCP foi entrevistado na RTP1 por Judite de Sousa. De passagem, convém precisar que a chamada Cimeira de Lisboa correspondeu de facto, ao que consta, a três cimeiras distintas e uma só verdadeira, um pouco à imagem e semelhança da Santíssima Trindade: se não estou em erro, que estas coisas são complexas, cimeira entre os estados integrados na NATO, cimeira entre os Estados Unidos e os seus súbditos europeus agrupados na UE, cimeira entre a NATO e a Rússia. Voltando, porém, à entrevista feita na RTP1 a Jerónimo de Sousa, que é o assunto que mais interessa para esta dupla coluna, será adequado dizer que decorreu como seria de esperar: a jornalista a mostrar moderadamente a agressividade obrigatória perante um dirigente comunista, a recorrer por vezes aos argumentos estafados e inconsistentes que constam da obrigatória cartilha do anticomunismo mediático, e Jerónimo de Sousa a desmontar com paciência os equívocos ou inverdades, a explicar o que já não deveria precisar de explicação. Esta é, de resto, a sina de qualquer dirigente comunista que por rara generosidade seja convidado a ir a um estúdio de televisão responder a perguntas que quase sempre são as do costume com ligeiras variações ocasionais, pelo que é justo dizer-se que nessas ocasiões, além dos méritos que lhe são necessários no quotidiano corrente, um dirigente do PCP tem de ter também muita paciência. Foi, pois, a entrevista decorrendo como seria de esperar, e em dada altura falou-se da então anunciada Cimeira e da presença portuguesa na aliança. A jornalista pareceu estranhar a contestação do PCP a tal presença. Pelo que Jerónimo de Sousa optou por um acto de esclarecimento e didactismo: tirou da algibeira um pequeno exemplar da Constituição de República e leu à sua entrevistadora uma parte do artigo 7º. Lá está escrito que «Portugal preconiza a dissolução dos blocos político militares». Pelo que, com toda a evidência, a participação portuguesa na NATO infringe a letra e o espírito da nossa Lei Fundamental, incorrendo em óbvia e grave ilegalidade.
É costume, dizemos nós
Estava então a entrevista perto do fim, talvez por isso nem sequer os telespectadores tiveram oportunidade de verificar se Judite de Sousa embatucara ou se iria tentar alguma argumentação que bem poderia ser, se porventura a jornalista fosse atacada por um acesso de franqueza, a de que o respeito pela Constituição já passou há muito tempo de moda, se é que alguma vez em moda esteve. E porque Jerónimo de Sousa tivera o cuidado de lembrar que o texto constitucional havia sido jurado pelo Presidente da República que assumira o dever de defendê-lo e o fazer cumprir, bem podia Judite acrescentar que pois sim, mas ninguém leva isso a sério. De facto, todos nós, cidadãos atentos como aliás é nosso dever, sabemos que desrespeitar a Constituição se tornou costume nacional, prática regular dos sucessivos governos desde há mais de três décadas, sinal claro de que jurar falso pode ter entrado na tradição dos comportamentos presidenciais. Se a entrevista se tivesse prolongado mais um pouco, bem poderia ter enveredado por um tema interessante: a necessidade e a vantagem de Portugal ter em Belém, a partir do próximo ano e finalmente, um Presidente que de facto faça cumprir a Constituição. Por duas boas razões, pelo menos. Por uma questão de honra nacional: isto de um país ter na Presidência quem faz vista grossa ao quotidiano desrespeito pela sua Constituição não parece ser de país honrado. E por uma questão de interesse público: na Constituição da República estão inscritos direitos fundamentais dos cidadãos portugueses que são ignorados dia após dia pelas sucessivas práticas governativas, pelo que o respeito por essas disposições constitucionais surge como factor de dignidade e de justiça à escala nacional. Mas a entrevista estava praticamente acabada, nunca aliás daria para tanto, o costume um pouco sinistro do sistemático desrespeito pela Constituição dificilmente seria nela consentido como assunto suficientemente abordado. Tudo tem os seus limites, como frequentemente se diz, e os limites de uma entrevista a um dirigente comunista são estreitos. Como aliás a prática demonstra ao longo dos tempos.