A democracia não é só poder votar, é também ter uma vida digna, direitos e justiça social

A Constituição da República Portuguesa continua a consagrar a subordinação do poder económico ao poder político democrático


Ao contrário do que alguns protagonistas da revisão da história procuram fazer crer, a democracia nascida da Revolução de Abril não foi apenas política nem teve um cunho «liberal». O direito de voto e a liberdade de expressão foram importantes conquistas revolucionárias, mas não só não foram as únicas como sobreviveram apenas porque foram acompanhadas por outras, de índole económica, social e cultural.

A nacionalização dos sectores estratégicos da economia – banca, seguros, indústria básica, telecomunicações, transportes – criou uma base sólida sobre a qual assentou o desenvolvimento do Portugal democrático, ao mesmo tempo que eliminou o poder do capital monopolista, sustentáculo do fascismo e da contra-revolução. A Reforma Agrária, gerida pelos trabalhadores e ao seu serviço, liquidou os latifúndios, aumentou a produção alimentar, acabou com o desemprego nos campos do Sul e criou importantes infra-estruturas produtivas e equipamentos sociais.

Uma e outra – que foram uma resposta dos trabalhadores e das massas populares em defesa da liberdade e da democracia acabadas de conquistar – acabariam por ser destruídas no processo contra-revolucionário de mais de quatro décadas e que continua, mas a situação actual do País aí está a testemunhar da sua validade: Portugal está hoje dominado pelos grupos económicos nacionais e estrangeiros, que encerraram e fragilizaram muitas empresas estratégicas e enviam anualmente para o exterior milhares de milhões de euros em dividendos e lucros cá gerados (só em 2024 foram transferidos para o estrangeiro, só em dividendos, 7,7 mil milhões de euros); nos campos reina o capitalismo agrário, com as produções intensivas e super-intensivas lesivas dos solos, dos recursos hídricos e das condições de trabalho, ao mesmo tempo que o País é altamente deficitário em termos alimentares, importando a grande maioria daquilo que consome.

A Cons­ti­tuição da República Portuguesa (CRP), que em 1976 consagrou o essencial das conquistas revolucionárias, continua ainda hoje – apesar de sucessivas revisões mutiladoras e descaracterizadoras realizadas na base de acordos entre PS e PSD – a con­sagrar a «su­bor­di­nação do poder eco­nó­mico ao poder po­lí­tico de­mo­crá­tico», a co­e­xis­tência dos sec­tores pú­blico, pri­vado e co­o­pe­ra­tivo e o pla­ne­a­mento de­mo­crá­tico do de­sen­vol­vi­mento.

 

Direitos sociais e culturais

O cunho avançado da Revolução de Abril em termos de direitos sociais e culturais fica evidente pela leitura da CRP, que toma partido pelo trabalho face ao capital ao consagrar a se­gu­rança no em­prego (art. 53.º), a li­ber­dade sin­dical (art. 55.º), a con­tra­tação co­lec­tiva (art. 56.º), o di­reito de greve (art. 57.º), o estabelecimento e actualização do salário mínimo nacional e o direito a férias periódicas pagas (art. 59.º), o direito ao trabalho (ar­t. 58.º), a igualdade, higiene, se­gu­rança e saúde no trabalho, assim como a as­sis­tência no desem­prego, a protecção es­pe­cial no tra­balho às mu­lheres grá­vidas e lac­tantes ou aos imi­grantes (art. 59.º). Reconhece ainda às cri­anças (art. 69.º), aos jo­vens (art. 70.º), aos ci­da­dãos portadores de de­fi­ci­ência (art. 71.º) e aos idosos (art. 72.º) es­pe­cial cui­dado e pro­tecção.

A pro­tecção so­cial (art. 63.º), a saúde (art. 64.º), a ha­bi­tação (art. 65.º), o am­bi­ente e qualidade de vida (art. 66.º), a ma­ter­ni­dade e pa­ter­ni­dade (art. 68.º), a edu­cação e a cultura (art. 73.º), o des­porto (art. 79.º) são consagrados como direitos universais, cabendo ao Estado garantir o seu efectivo cumprimento. O Serviço Nacional de Saúde e a Escola Pública, conquistas de Abril, acabaram com algumas das mais graves chagas sociais que eram apanágio do fascismo, como a elevada mortalidade infantil ou o analfabetismo.

Mas, hoje, ao arrepio da Constituição, assistimos à degradação de muitos destes direitos, pela mão de sucessivos governos, e só não foram mais longe na sua acção destruidora graças à luta dos trabalhadores e das populações.

A afirmação dos direitos económicos, sociais e culturais de quem vive e trabalha em Portugal não está no «mercado» ou nas «liberalizações», que priorizam o lucro e transformam utentes em clientes. Está, sim, no reforço dos serviços públicos e das funções sociais do Estado, na submissão do poder económico ao poder político, no rumo apontado na Lei Fundamental do País – que importa defender e fazer cumprir.



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